segunda-feira, 30 de maio de 2011
Os invisíveis
Dilmércio Daleffe
Era uma tarde chuvosa quando o asfalto ainda molhado reluzia o reflexo solitário de Manoel Rodrigo de Souza. Caminhando sozinho no acostamento da rodovia entre Campo Mourão e Maringá, ele carregava um saco sujo com algumas latas amassadas de refrigerante. Sem pressa e sem saber onde estava indo, decidiu sentar e contar um pouco de sua história. Falar sobre a vida de um andarilho de estrada, do sofrimento e das humilhações. Sem documentos, com nenhuma informação e vivendo à margem da sociedade, ele é um invisível. Um ser humano que praticamente não existe aos olhos das outras pessoas. Aquelas as quais trabalham, pagam seus impostos, consomem, mas que preferem ignorá-los.
Manoel não tem documentos e perdeu o contato com a família há pelo menos 30 anos, desde que iniciou a jornada da estrada. Sujo, com as roupas molhadas, não resta outra coisa a fazer senão beber. E é assim que ele faz quase todos os dias de sua vida. Aos 59 anos de idade, ele mantém apenas a roupa do corpo, não carrega mais nada além das latinhas. Aliás, são elas que o ajudam a comprar a “pinga-santa” de todos os dias. Não fossem os pontos de parada dos motoristas nas estradas, Manoel nem comeria. “Nunca passei fome. Sempre ganhei um prato de comida”, disse.
Para dormir, quem o acolhe são os abrigos de ônibus. A noite estava chegando, mas a preocupação dele não era onde dormir e sim, o que tomar. “Da um dinheiro aí pra pinga doutor”, pede ao repórter. Ainda sob o efeito do álcool, Manoel pouco se lembra do passado. Disse que nasceu em Cianorte, mas que deixou a família em Londrina. Hoje, nem ele sabe para onde está indo. É um sobrevivente das sarjetas das grandes cidades que preferiu ganhar o mundo a pé. Em sua concepção, é um homem livre. Livre do consumismo, dos deveres como cidadão, da rotina de todo trabalhador.
A vaidade no asfalto
Aos 47 anos de idade, Lucilda Maria estava sentada sobre duas bolsas perto da rodoviária de Campo Mourão. Ela descansava para encarar outro trecho a pé, agora com direção a Maringá. Disse que há 15 dias deixou Curitiba. Apenas uma carona de carro. O restante foi andando pelas estradas, num percurso de quase 500 quilômetros. Também invisível, ela mantém um mínimo de vaidade. As unhas estavam pintadas, do seu jeito, de branco. “Ganhei o esmalte. Gosto de ficar arrumada”, disse.
Lucilda caminha pelo Brasil há 16 anos. Já perdeu as contas de quantos chinelos gastou pelas estradas. Hoje ela usa um de cada modelo. Afirma que a jornada em que se encontra não foi escolha sua, mas imposição do destino. Segundo ela, brigou com a irmã, apanhou do companheiro, tendo que deixar os filhos para não morrer. “Essa vida tem muito sofrimento”, disse. Para tomar banho, usa os rios. Para comer, pede. Para dormir, utiliza os abrigos de ônibus da estrada. Nas duas bolsas que carrega, traz um cobertor e roupas batidas pelo tempo. Também leva sal, arroz e uma panelinha velha. Quando o prato de comida não vem, ela se vira com o que tem. Lucilda não possui quase nenhuma informação. Não sabia nem mesmo que Dilma era a nossa presidente. Pior, não sabia nem quem era essa tal de Dilma. No entanto, como ela explicou, mesmo que soubesse, isso não vai mudar sua vida em nada.
Medo de gente
Ele não disse o seu nome e quase não conversou. Parecia ter medo do bloco de notas e da câmera fotográfica. Arisco, disse que anda pelo Paraná há muitos anos, não tem família e dorme ao relento. Não fosse a falta de dentes, os chinelos furados e as mãos e pés calejados, se assemelharia a um galã de cinema italiano. Isso porque mantinha os cabelos compridos e grisalhos, bem penteados, e uma barba completamente branca por fazer. O rosto tinha traços de um homem bonito.
Carregava um saco com poucos pertences. Na mão surrada, um pedaço de pau, semelhante a um cajado. Em resumo, ele parecia um profeta. Foi encontrado na rodovia próximo a praça de pedágio de Floresta. De poucas palavras, disse que não ganharia nada permanecendo à entrevista. Deixou o repórter falando sozinho e se mandou estrada a fora. Certeza, tinha aflição às pessoas.
Psicologia para entender
São vários os fatores que levam um indivíduo a se tornar andarilho. Problemas econômicos como desemprego e perda de posses, ocasionam conseqüências como a vergonha, desespero e humilhações. Segundo explica a psicóloga Alice Maria Fernandes de Moraes, em casos como este, a pessoa pode ter atitudes drásticas, como sair sem rumo pelo mundo, fugindo da realidade. Violência, abusos sexuais ou até, traição no casamento também podem desencadear a frustração de um indivíduo. Fora isso, outro importante fator está atrelado ao alcoolismo e a distúrbios mentais. “Geralmente são estes fatores os maiores responsáveis a levar pessoas às estradas”, diz. A psicóloga também explica que ainda existem aqueles que estão nesta vida simplesmente pelo fato de gostarem de aventuras, deixando a responsabilidade para trás. “Muitos preferem um prato de comida na hora da fome do que trabalhar para garantir sua sobrevivência”, afirma.
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