Dilmércio Daleffe
Hoje, aos 46 anos de idade, Pedro Ferreira dos Santos só está vivo devido a insistência de um médico, Osvaldinei de Sá, que ameaçou chamar a polícia para levá-lo ao hospital. De enfermeiras, que forneceram atenção e carinho e, até da prefeitura de Boa Esperança, que o retirou de um casebre podre para transferí-lo à uma boa casa na cidade. O drama vivido por Pedro não foi espelhado em nenhum filme, muito menos em novelas com dramalhões mexicanos. Ele é real e está bem ao lado, na pequena Boa Esperança, nome sugestivo para quem acaba de renascer. “Se eu continuasse naquela casa teria morrido”, diz ele. Na casa de madeira caindo aos pedaços, construída ainda na década de 60, a família se espremia entre quinquilharias amontoadas nos cantos, armários e camas. Eram sacolas de roupas doadas pela comunidade que jamais foram abertas pela família. Tantas eram que acabaram por abrigar os roedores.
Muitas delas ficavam sobre a larga cama de Pedro, que não se levantava. Permanecia inerte, dependendo apenas da atenção da mãe(Tereza), da irmã(Margarida), do pai(Antônio) e do primo (José). As duas primeiras morreram. Num descuido dos outros dois, ele quase perdeu os pés. Com as pernas dormentes devido a uma doença degenerativa, os bichos passaram a se alimentar das feridas abertas por eles próprios. Pedro nada sentia. Para piorar a situação, o escuro da casa facilitou com que Antônio e José passassem despercebidos. Foi o suficiente para o início da sua tragédia pessoal.
Acompanhamento
Na verdade, a equipe de saúde da cidade sempre assistiu a família. No entanto, como o acesso até a propriedade era difícil, principalmente com a chuva, as enfermeiras ficaram quase duas semanas sem fazer as visitas em virtude do barro. Foi o suficiente para se depararem com uma cena desumana, irreal. Lá, puderam observar que os pés de Pedro foram praticamente mutilados pelos roedores, ocasionando uma série de infecções. “Achamos que o quadro poderia até ser irreversível”, observou o médico. Mesmo necessitando de amparo médico, Pedro relutou para sair da casa. Osvaldinei teve, inclusive, que ameaçar chamar a polícia para levá-lo ao hospital.
Mas valeu a pena. Duas semanas na cama do hospital fizeram com que seus pés fossem recuperados. De acordo com o médico, a recuperação foi rápida, mas o paciente continuou internado como medida de prevenção, uma vez que não podia mais voltar para aquele ambiente, podendo ser até considerado como “hostil”. Num depoimento emocionado, Osvaldinei relatou que chegou a chorar quando viu as condições de Pedro.
Situação
A família morava numa quarta de terra, num sítio distante a 12 quilômetros do centro de Boa Esperança, numa comunidade conhecida como Água do Pavão. Lá, os filhos cresceram, alguns foram embora, outros como Pedro adoecerem e, outra morreu, como foi o caso de Margarida, morta aos 54 anos em maio de 2010. “A casa estava sem condições para abrigar um ser humano”, disse Rogério Matias, chefe de gabinete da prefeitura de Boa Esperança. Segundo ele, até que tentaram reformá-la. No entanto, a intensidade de entulhos dentro dela era tamanha que o melhor a fazer foi levá-los para a cidade. Até sapos ficavam em seu interior, sem nunca atrapalhar ninguém, comentou uma das enfermeiras.
Antônio, o pai, lamenta sobre a situação do filho, a quem diz ter muita pena. “Somos todos analfabetos aqui”, disse. A família sempre dependeu da agricultura para sobreviver, trabalhando muito, desde cedo. Por isso não se preocuparam em estudar. Aos oito anos, Pedro já capinava na roça ao lado do pai e dos outros irmãos. Até a sua adolescência, segundo o relato do pai, Pedro era muito trabalhador. Mas uma desgraça se abateu sobre o corpo franzino do rapaz, o levando para a cama definitivamente.
Com a ajuda da prefeitura, o sítio foi trocado por uma casa na cidade. Nada de luxo. Mas um imóvel com condições decentes para uma família. Hoje, Pedro fica em um quarto arejado, bem iluminado, literalmente com os pés para cima e, o melhor, com as visitas mais regulares do pessoal da saúde.
Além disso, oito terços e uma imagem de Santo Antônio decoram a parede do quarto. “Rezo todos os dias para agradecer a saúde que tenho”, diz Pedro. Brincadeiras à parte, ele também diz rezar pelo seu time, o Palmeiras, o qual vem deixando a desejar nos últimos jogos. Sua única diversão é o inseparável rádio. “Adoro ouvir música”.
Companhia
Quem mais cuida de Pedro é José, o primo “Zeca”, com 64 anos. Ele deixou a capital paranaense há mais de 20 anos para morar com seo Antônio. Agora, com a morte das duas únicas mulheres da casa, é ele quem destina atenção especial ao acamado. “Procuro fazer de tudo por ele. É uma pena vê-lo assim”, disse. Até o início de 2010, embora permanecesse sempre na cama, Pedro ainda sentava. Mas a fragilidade de seu corpo, que vem piorando com o passar dos dias, permite a ele ficar apenas deitado. De acordo com o primo, os movimentos das mãos também começam a ficar debilitados. “Agora até comida temos que dar a ele”, lembrou. Já o pai passa a maior parte do tempo fora. É ele quem administra a renda da família, resultante de três aposentadorias.
Mas as lembranças da irmã e da mãe, mortas no último ano, remetem Pedro à tristeza. Segundo ele, Tereza morreu aos 74 anos de velhice. Já, Margarida, a irmã, morreu de tristeza. Não suportando a ausência da mãe, ela teria se entregado a depressão. Perdeu muitos quilos, começou a tossir intensamente e acabou morrendo na própria casa, nos braços de seo Antônio. O pessoal da saúde confirma a história. De acordo com as enfermeiras, a irmã parou de comer. Diagnosticada, ela não ingeria as vitaminas e jamais aceitou o convite para ir até o hospital. Passava dias sem sair da casa, fechada em seu próprio mundinho no escuro do casebre. Ao se lembrar de Margarida, Pedro se emociona e diz nunca se esquecer da companheira. “Um dia vamos nos encontrar novamente. Rezo para ela”, diz.
Família recebeu ajuda há quatro anos
Há cerca de quatro anos a prefeitura local construiu um quarto e um banheiro em alvenaria para que Pedro tivesse melhores condições de higiene no sítio em que morava. No entanto, segundo relatos de enfermeiras e do próprio órgão público, os dois cômodos jamais foram utilizados. Pior que isso. O local acabou sendo usado para acomodar mais bugigangas e quinquilharias da família. A higiene da casa sempre foi reprovada pelo pessoal da saúde. Hoje, além da casa na cidade ser melhor, uma outra prima de Pedro, Fátima, vem colaborando com a organização do novo lar. Ela faz a janta, lava a louça e ainda trata das roupas da turma. Enquanto o tempo passa, Pedro vai levando a sua vida, mesmo dependendo dos outros. Mas esse é o seu destino, a sua sina.
Matéria publicada no Jornal Tribuna do Interior/ 2010
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