segunda-feira, 30 de maio de 2011

O grito de Cláudia




Dilmércio Daleffe

Cláudia Galvão de Lima é uma simples vendedora de cortinas. Aos 29 anos de idade, trabalha atrás de um balcão numa cena cotidiana, comum a tantas outras pessoas. Sua rotina é exatamente igual a todos os dias, com exceção apenas dos novos clientes e de suas conversas, vez em quando, desnecessárias. Sua vida bem que podia ser assim para sempre, não fosse o grito que decidiu soltar. Com problemas financeiros, primeiro, para cuidar da saúde do marido vítima de câncer e, agora, com uma grave alergia no filho de menos de dois anos, ela foi obrigada a recorrer à justiça. Foi lá, nas mesas do Ministério Público – MP - de Campo Mourão, onde descobriu possuir mais direitos que pensava. Finalmente, seu grito foi ouvido e o medicamente do filho começou a chegar. Desta vez, de graça.

“Claudinha”, como é conhecida devido à altura – mede um metro e meio e olhe lá -, é uma gigante. Há quase quatro anos, teve que lidar com um câncer no intestino do marido, Rodrigo. Ele tinha apenas 26 anos quando descobriu a doença. Bancou o tratamento sem a ajuda da justiça. Mesmo porque recebeu apoio e tratamento gratuito via SUS na ala oncológica da Santa Casa de Campo Mourão. Mas foi nos corredores daquele órgão quando observou que sua força também vinha do alento de pessoas que ela não conhecia. Eram voluntárias que deixavam os afazeres de lado para dar uma palavra de conforto aos doentes. E funcionava. Depois da cura de Rodrigo, ela também começou a prestar a mesma solidariedade. Simples visitas, frases vindas do coração e uma vontade em ajudar que ainda desafia a lei dos homens. Afinal, são poucos os que de graça, nos dias de hoje, se prestam a cuidar de gente. Que toque as trombetas um membro da nobre política que faz isso.

Enquanto fazia e, continua fazendo as visitas, ela descobriu que o filhinho David, de pouco mais de um ano, mantém em seu organismo uma alergia a lactose. Nem mesmo o leite materno o pequeno usufruiu. Diagnosticado o problema, veio o susto. Cláudia teria que comprar um produto chamado Neucate Advance – que substitui o leite – com preço médio de R$590, a lata. As chances de adquirir o medicamente com os próprios recursos foi logo descartada. Afinal, uma única embalagem dá para dois dias e meio, só. Vendo o filho necessitado e os bolsos vazios, ela não pensou duas vezes. Foi até o MP. Lá, depois de informada, recebeu pronta ajuda da equipe da promotora Rosana Araújo de Sá Ribeiro Pereira. Foi aí que descobriu que seus direitos vão além do que os poucos ensinados nos bancos das escolas. Ela finalmente conquistou a cidadania, saiu de cabeça em pé e ganhou a certeza que seu filho não ficaria mais desassistido.

Bonito na teoria, feio na prática. Nem mesmo a ordem do MP é deveras cumprida pela Secretaria de Saúde de Campo Mourão. De acordo com Cláudia, nos últimos 30 dias nenhuma lata foi repassada pelo município. Com isso, sua conta já chega a quase R$5 mil, dinheiro que, certamente, não será ressarcido pelo órgão. “É um direito constitucional que eu tenho. O município não está fazendo o seu papel”, afirma. Ela explica que a prefeitura alega depender de um pregão eletrônico para adquirir o produto. No entanto, nenhuma empresa compareceu, ocasionando a ausência do Neucate. “Poderia não aparecer ninguém no pregão para a venda de cortinas, que é o que eu vendo. Mas se falando de remédios, isso é um descaso. É negligência”, diz.

O drama de Daniel



Como a busca pelos seus direitos vem funcionando, apesar das falhas, Cláudia decidiu expandir seu grito a outros cantos. Nas visitas na oncologia ela conheceu Daniel Pedro Dias, um jovem de 39 anos com câncer no exôfago. Pobre e sem recursos, ele também recorreu ao MP para conseguir um suplemento alimentar conhecido como Nutren. Cada embalagem custa cerca de R$37. Não é muito, mas imagine para alguém que depende de salário mínimo para viver.

Daniel hoje está encostado. Ele continua a lutar contra o mal que o assola. Incansável trabalhador, ficou 18 anos como ensacador. Mas agora foi obrigado a parar. O peso que sempre carregou na vida agora está direcionado apenas ao combate a doença e as preces a Deus. Ele conheceu Cláudia enquanto fazia quimioterapia na ala oncológica da Santa Casa. Sem recursos para a compra do Nutren, foi levado até o MP pela agora inseparável amiga. “Ela foi um anjo. Sem ela estaria enrolado, pois não tinha dinheiro para o medicamento”, disse.

Casado com a dona de casa Rosana e pai de três filhos, entre eles a pequena Daniele, Daniel vem sustentando a família com um salário por mês. É pouco. Mas seria muito menos se tivesse que bancar o medicamento com os próprios recursos. Ajudado pela equipe do MP, ele recebeu o que precisava. Antes disso, no entanto, foi barrado na burocracia da Saúde. “Como estava doente, meu cunhado correu atrás. Mas ele desanimou quando viu a dificuldade para conseguir o remédio”, explica.

A tragédia de Rosely




A funcionária pública Rosely da Cruz Conrado está de luto. Aos 56 anos de idade, ela acaba de sepultar o marido, Carlos, um trabalhador aposentado da previdência social. Ele morreu a poucos dias vítima de câncer na laringe. A doença foi diagnosticada ainda em 2010, mas somente em janeiro deste ano é que a família passou a comprar o medicamento chamado Nutren. Acontece que o produto começou a pesar no bolso. No mesmo caminho de Cláudia, seguiu Rosely. O MP então ordenou que a Saúde fornecesse 15 latas do suplemento por mês. Durante fevereiro, março e abril, das 45 latas que o município teve que fornecer, deu apenas sete. E ficou nisso. Carlos não precisará de nada mais. Ele morreu no primeiro dia de maio. “Ele não morreu pela falta do Nutren. Mesmo porque minha família colaborou para que o medicamente jamais faltasse”, esclarece Rosely.

Durante a sua peregrinação em busca do produto, a funcionária pública disse que encontrou muitos obstáculos, burocracia, má vontade e humilhações. Chegou a ouvir de uma atendente da Saúde que outras pessoas precisavam do remédio, mais que ela. “Talvez ela tenha visto a chave do carro em minha mão. Mas isso não quer dizer que seja rica. Moro no Cohapar e trabalho até hoje porque preciso”, disse. O aprendizado também fez com que ela passasse a dar forças aos doentes da oncologia da Santa Casa, além de informar sobre os direitos a quem não tem condições de comprar remédios. “Penso em quem não é esclarecido. Muita gente deve morrer pela falta de remédios sem saber que pode recebê-los gratuitamente”, afirma.

A pequena Isabele



Isabele Caroline tem pouco mais de um aninho de vida e nem imagina o que seus pais já fizeram por ela. Vítima de uma alergia a proteína do leite, também teve que passar a tomar o Neucate, aquele mesmo produto do início da matéria, com custo de quase R$600 a lata. Diagnosticada, a mãe estava tranqüila, uma vez que, ainda no hospital, o medicamento era dado de graça. Ao ter alta, veio o susto. “Pensava que era barato, mas me enganei. Quando vi o preço comecei a chorar. Sabia que a saúde da minha filha dependia daquela latinha”, disse a mãe, Daniele Maia.

Com medo de não conseguir comprar o produto, colocou o carro à venda. Mas logo correu à Secretaria de Saúde. Lá, segundo ela, foi desestimulada a pedir pelo Neucate. “Eles disseram que não seria fácil receber, uma vez que era muito caro”, disse. Foi aí que teve a idéia de procurar o MP. Lá, após 20 dias, teve a melhor resposta de sua vida: o medicamento seria fornecido. “Agora está tudo bem. Mas quando vi a dificuldade de não ter o produto, tive a sensação de impotência, de desespero. Chorei muito”, afirma. De acordo com ela e com o marido, Alessandro, as pessoas têm que procurar seus direitos, principalmente, depois de se submeter aos altos impostos do Brasil. “Nós temos um pequeno negócio e sabemos das dificuldades em pagar impostos. Então é justo também que tenhamos acesso a Saúde”, disse.

A médica pediatra, com atuação em gastroenterologia, Patrícia Agulhon disse que não entende porque municípios como Campo Mourão têm dificuldades em doar medicamentos como o Nutren e o Neucate. Segundo ela, existem verbas federais destinadas à compra dos produtos. “Qualquer cidade do interior de São Paulo oferece os mesmos remédios em simples postos de saúde”, afirma. A mesma situação ocorre em Curitiba. Ela explica que a capital também mantém os produtos em postos de saúde, bastando apenas uma receita médica para retirá-los.


A voz do Ministério Público

“Qualquer pessoa tem o direito constitucional a remédios e tratamentos via Sistema Único de Saúde”, afirma a promotora Rosana Araújo de Sá Ribeiro Pereira. Segundo ela, quando o indivíduo tem recusas através da Saúde de sua cidade, ou até do governo, o passo a seguir é procurar o Ministério Público – MP. Somente em Campo Mourão, uma média de cinco pessoas ao dia são atendidas no órgão, todas em busca de direitos que lhes foram negados nos balcões públicos.

Ao chegar no MP, o cidadão preenche um formulário com dados pessoais e relativos aos seus problemas. A promotora informa que é necessário levar a prescrição médica. Em seguida, o órgão fará um levantamento junto a Saúde. Se for mesmo necessário, a prefeitura ou, o estado, terá que cadastrar o doente, passando automaticamente, a fornecer o tratamento ou o medicamento solicitado. Quando o paciente não é atendido, o MP entra com um mandado de segurança, obrigando o seu cumprimento. Em Campo Mourão são inúmeros os casos já cadastrados através de solicitações via MP.

Município não consegue suprir demanda

Diante de inúmeras reclamações de pacientes que não conseguem acesso ao suplemento alimentar, o diretor geral da Secretaria de Saúde de Campo Mourão, Marcio Alencar, informou que a demanda é muito grande e o município acaba não conseguindo suprir a demanda. Ele comenta que a secretaria iniciou a entrega destes produtos num valor pequeno, mas tem aumentado bastante. Segundo o diretor, o município fez recentemente uma licitação de aproximadamente R$ 150 mil para a compra do produto, mas não apareceu nenhum vendedor.

Alencar contradiz a médica pediatra, Patrícia Agulhon. Conforme ele, como o produto não é considerado medicamento, não existem verbas federais para a compra. “Hoje as pessoas procuram o Ministério Público. A Justiça tem liminar para entregar porque a família não pode comprar, mas não é bem esse o critério que a Justiça tem utilizado. E para nós oferecermos tem que ter um jeito de comprar”, explica.

De acordo com Alencar, já houve entreveros com pacientes que precisavam do suplemento. Ele ressalta que a secretaria de Saúde fez licitação, mas não apareceu nenhum interessado em vender o produto. “As pessoas poderiam requisitar junto ao Governo Federal, mas buscam em quem está mais próximo, no caso, a secretaria de Saúde”, critica.

Conforme Alencar, os produtos são receitados por nutricionistas. Segundo ele, quando a receita chega à secretaria, os casos são repassados para avaliação de um profissional do município para confirmar a real necessidade de uso. “Existem alguns que são complementos que podem usar algum alimento diferenciado, mas tem que ser acompanhado por um nutricionista. Isso depende, pois existem casos de algumas pessoas que tem alergia.”

Alencar comenta que a secretaria de Saúde tem recebido vários pedidos do Ministério Público para atender pacientes que precisam do suplemento, porém a demanda é muito grande. Ele explica que além de pacientes do SUS, particulares também querem o complemento. Sobre o fato de o paciente ter de recorrer ao MP toda vez que precisar do suplemento, ele explica que na verdade é devido a dificuldade do município em oferecer o produto. “Não tem onde comprar”, justifica.

Em relação a supostos pacientes mal atendidos, o diretor pede às pessoas que denunciem. Segundo ele, toda denúncia de mau trato será apurada e o responsável penalizado. “Não podemos deixar que a população seja mal atendida aqui”, completa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário