domingo, 22 de setembro de 2013

Os sonhos de Cleuza são infinitos


Quanto vale um sonho? Para Cleuza, seu sonho não tem preço. Afinal, para ter sua habilitação, fez até promessa em Aparecida do Norte. Já foram nove tentativas, nove reprovações. Como auxiliar de cozinha, os amigos brincam dizendo ser melhor ela pilotar apenas o fogão.



Dilmércio Daleffe

Sonhos existem para renovar esperanças. E desde os primórdios, o ser humano é movido por seus desejos. Assim, cada pessoa, em seu interior, imagina suas conquistas. E sonhar, além de bom, não custa nada. É desta maneira que Cleuza – nome fictício da mulher que não quer ser identificada – vem imaginando suas glórias. Há um ano, ela vem lutando para ter o direito de dirigir o veículo da família. O único problema é passar pela prova da baliza, no Detran. Nos últimos 12 meses, foram nove tentativas, todas frustradas.   Sua persistência é tão grande que foi até Aparecida do Norte pedir. “Fui lá e fiz promessa. Ainda vou tirar minha carteira de motorista”, disse.

Cleuza é uma auxiliar de cozinha de 43 anos de idade. Mulher simples, batalha todos os dias para o sustento de sua família. Ela de um lado, o marido de outro. E, juntos têm três filhos. Ao mesmo tempo em que trabalha, não para de pensar na bendita carteira de motorista. “As vezes nem eu acredito que já reprovei tantas vezes”, disse. Na verdade, ela já possui habilitação, mas de moto. Quer agora a carteira de carro. Cleuza trava a batalha para poder ser mais independente na vida, não depender tanto da ajuda do marido. “Se eu tivesse a carteira poderia fazer minhas coisas sozinha, sem atrapalhar ele”, explicou.

O maior dilema de Cleuza é adentrar aos portões do Detran e se desesperar. Segundo ela, mesmo sabendo fazer as manobras, bate uma ansiedade, uma pressão na prova. “Nas aulas perto do cemitério faço a baliza em até dois minutos, sem bater em nada. Mas quando é pra valer, acabo errando”, diz. Em uma das nove vezes ela até passou na baliza. Mas daí, acabou reprovando na direção de rua. Parece até coisa do destino.

Preocupada com seu drama, foi parar em Aparecida do Norte. Lá, pediu, orou e fez promessa pra quando passar nos testes. “Levei uma foto minha ao lado do carro pra ser abençoada. Deus vai me ajudar”, revelou. Segundo ela, quando isso acontecer, vai ter churrasco e fogos de artifício. Mas enquanto o milagre não vem, o jeito é treinar mais e mais vezes. Falando nisso, daqui uma semana, uma nova prova será realizada. Será a décima tentativa. Caso não passe novamente, terá de pilotar apenas seu fogão. Cleuza continua a sonhar.



sexta-feira, 20 de setembro de 2013

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Felício morreu distante da felicidade


Felício morreu sem Deus, sem misericórdia e sem saúde. Era um cara normal, de apenas 50 anos. Desenvolveu obesidade mórbida depois de uma desilusão amorosa. Diante de tanto sofrimento, não conseguiu que identificassem os sintomas que o levaram à morte. Agora ele se foi. Seus sonhos acabaram. A família clama por justiça. 




Dilmércio Daleffe

No dicionário de nomes próprios, Felício significa feliz e indica uma pessoa de personalidade agradável e generosa. Isso na teoria. Na prática, Felício Jorge Franco Abdalla, teve motivos de menos para não conhecer o termo felicidade. Morto na segunda-feira, ele foi sepultado na manhã de ontem, numa cerimônia simples, sem reconhecimentos e sem glórias. De origem síria, o homem morreu sozinho, depois de uma guerra contra ele próprio. Lutando contra a balança, pesava 270 quilos. Quase não mais se locomovia. Morreu pobre, sem amigos, sem Deus e, de acordo com a filha, Liz, desassistido pela Saúde brasileira. Seu quadro era assustador. Com feridas abertas nas pernas, larvas o consumiam. Fora isso, apresentava problemas cardíacos e respiratórios. Mesmo a filha clamando por uma internação, médicos insistiam dizendo ser desnecessária. E, diante de um festival de equívocos, Felício acabou morto. Morreu por falência múltipla de órgãos, edema agudo no pulmão e uma pneumonia grave.

Os problemas de Felício tiveram início há quase seis anos. Com tendência para engordar, ele desenvolveu a conhecida obesidade mórbida depois de ter se separado da amásia, com quem teve uma filha, Sabrina. Acontece que não conseguia suportar o fato de ficar sem a mulher. A partir de então, passou a descontar a tristeza e solidão na comida. Ainda “gordinho”, iniciou uma jornada sem volta. Comia tanto que seu peso explodiu. E as consequências logo apareceram. Experiente motorista de caminhão, afastou-se do trabalho e, após tanta insistência para voltar com a mulher, decidiu deixar a cidade de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Foi morar com um irmão, num sítio no município de São José, em Santa Catarina.

Lá, com feridas nas pernas ocasionadas pelo peso, passava a maior parte do tempo sobre a cama. Nas idas e vindas até Ponta Porâ, novamente em busca de sua paixão, perdeu uma cirurgia bariátrica. E como sua situação só se agravava, atendeu ao pedido de sua outra filha, Liz Dalmi Abdalla de Jesus. Fruto do primeiro casamento e residente em Campo Mourão, ela o chamou para vir morar na cidade. Atendendo ao seu desejo, Felício deixou as areias de Santa Catarina há apenas três meses e veio até as terras vermelhas do Paraná. Passou a morar com a moça, seu genro e duas netas. Mas aqui as coisas só se agravaram.

Liz conta que mesmo cuidando do pai, as feridas das pernas não cicatrizavam. Um dia, ao verificar sua pele, notou ovos de insetos que saiam dos machucados. Então o levou até o postinho de saúde e lá descobriram que uma das pernas estava repleta de larvas. Elas consumiam o membro, o que fazia exalar um cheiro forte, podre. O quadro era a explicação da febre incessante do pai. Tomando medicamento para combater as larvas, sua cama amanhecia com sangue e “bichos” aos montes, conta a filha.

Mas na última semana, mais precisamente na quarta-feira, dia 11, Liz decidiu ir até o posto de saúde novamente e pedir uma internação ao pai. É que agora ele reclamava de falta de ar. Segundo ela, do posto, Felício foi encaminhado ao 24 horas. Lá, após uma espera de quase oito horas, uma médica teria negado a internação. “Ela disse que não era caso para internação. Disse que existiam casos mais graves. Se referia apenas as larvas de sua perna. Mas em nenhum momento falou sobre a falta de ar. Ninguém examinou ou pediu exames de seu pulmão”, afirmou. Sem receber a atenção que queria, a família voltou para casa. Liz disse ter se sentido humilhada, principalmente, por não ter conquistado um direito básico a todo cidadão brasileiro: saúde.

Na quinta, sexta e sábado, Liz levou o pai até o posto de saúde para tomar os remédios (Cefalexina) receitados pela equipe do 24 horas. Mas a febre voltou forte e a falta de ar só piorava. No domingo, Felício caiu de sua cama e, não conseguindo mover as pernas, Liz acionou a equipe de socorristas do 193. Com o peso, eles não conseguiram removê-lo. Chamaram mais dois policiais militares para ajudar. Mesmo assim, ainda foram necessários outros homens do Corpo de Bombeiros para leva-lo até a Central Hospitalar. O cheiro era tão forte que os socorristas adentraram a casa de Felício com máscaras. “Suas pernas estavam apodrecendo. O cheiro era forte demais. Além disso ele começou a ter bolhas e secreções em todo o corpo. A situação do meu pai não era nada boa”, disse Liz. Segundo ela, ele estava tão deprimido com a própria situação que culpava Deus. “Ele dizia que Deus havia o abandonado”.

Levado até o hospital, Felício não suportou e morreu na manhã de segunda-feira. De acordo com a certidão de óbito, morreu por pneumonia grave. Ali, naquela cama fria de hospital, todos os sonhos do ex-motorista de caminhão haviam sido encerrados. Ele tinha o desejo de melhorar a vida das filhas, dar um futuro decente as netas. Mas não teve tempo. Deixou a vida aos 50 anos de idade. Para a família, a saúde brasileira o abandonou.


“Nada vai trazer meu pai de volta. Eu sou pobre e também pago impostos e vejo que nada se faz nesta cidade. Tudo continua sempre igual. Vemos nas eleições o povo se vendendo por um tanque de gasolina, uma cesta básica e nada muda de novo. Até quando vamos ver a mesma cena”? questiona Liz. Ela denunciou o caso ao Ministério Público e aguarda justiça. A secretária de Saúde de Campo Mourão, Patrícia Chandoha, foi procurada ontem e preferiu não se manifestar. Segundo ela, vai verificar a situação, ver os pareceres e prontuários antes de falar sobre o assunto.

domingo, 8 de setembro de 2013

Refugiado político, José Daniel virou profeta


O uruguaio José Daniel é um refugiado político que optou seguir sozinho pelas estradas brasileiras. Na contramão da sociedade, decidiu isolar-se do mundo para refletir sobre ele próprio, o mundo, a vida. Com um cajado na mão e uma roupa branca, segue de cidade em cidade em busca de um objetivo ainda não definido. Deseja apenas viver, mas do jeito dele.




Dilmércio Daleffe

Quando o chão desaparece e a sorte some, o jeito é respirar e continuar a viver. E é assim que o uruguaio José Daniel, de 59 anos, vem fazendo. Refugiado político de seu país, atravessou a fronteira já, há três anos e percorreu quase todos os países da América do Sul. Mas, somente este ano chegou ao Brasil. Na verdade, trata-se de um andarilho, um nômade. Um homem extraordinariamente culto, que fala sobre medicina oculta, astros, Deus, harmonização da natureza. Um sujeito diferente, que prefere livros a bebida, conversa a discussão. José Daniel transformou-se num profeta. Hoje, caminha só numa estrada sem destino. Mesmo vendo as placas e, seguindo sem direção, diz não estar perdido, embora ainda procure a si mesmo.

José foi encontrado carregando um cajado e vestido com uma roupa comprida, toda branca. Usava um chapéu surrado, de cor azul. Seus pés vestiam chinelos improvisados com elásticos coloridos. Sua barba grisalha escondia o rosto de um homem sofrido, marcado pelo tempo. À sua frente, um saquinho de papel com algumas moedas e notas de R$2. Um cartaz escrito em espanhol o anunciava como um profeta. Ao lado, encostada no poste, uma bicicleta antiga que segurava sua mochila de viagem. Mas se ele, apenas por si só já chama a atenção, ouvi-lo é uma surpresa ainda maior. 



Falando baixinho, quase em sussurros, numa tentativa frustrada de português, José conta que viaja com sua magrela estrada a fora carregando uma carriola. Nela vão seus livros, objetos, esperanças. E é ali onde ele também passa suas noites. Com uma coberta velha, dorme tranquilo em seu interior. Não depende de ninguém pra descansar. Comida jamais faltou. Para isso, ele inventa umas esculturas, distribui pequenas mensagens bíblicas e assim vai ganhando uns trocados. Viaja sozinho, lendo, divagando, refletindo, numa paz de dar inveja. “Ser profeta não significa ser sábio. Qualquer um pode ser profeta. Para isso basta ter persistência”, disse.

José está sozinho no mundo há pelo menos três anos. Foi uma decisão sua e, apenas sua. Na solidão de seus botões, acredita num mundo honesto, de paz, harmonioso. E é por isso que continua a andar. Está atrás de sua verdade, dele mesmo. “Meu objetivo é fortalecer minha espiritualidade. É me encontrar. Descobrir a mim”, disse. A princípio pensa-se num homem fora de si, maluco, enlouquecido. Mas não é bem assim. Em pouco mais de uma hora de conversa, não demonstrou nada de louco. Pelo contrário. Ele sabe o que deseja. Busca o litoral brasileiro, mais especificamente, Santa Catarina. Lá, quer encontrar sua companheira e iniciar uma família.



Conta que ainda em Montevidéu – capital do Uruguai – ganhava a vida como engenheiro de som e iluminador profissional de teatro. Mas era contra o governo do Presidente José Mujica. Então, segundo ele, foi perseguido, sendo forçado a deixar seu país. A partir daí, descobriu que a estrada era seu destino. E foi desta maneira, com a solidão e a leitura, que foi buscando a si mesmo. “O bem e o mal existem. Mas eles estão escondidos dentro de cada um de nós. Alguns deixam o mal escapar. Outros, o bem”, disse.


Mesmo com demônios aflorados, a humanidade é feita a imagem e semelhança de Deus, disse José. Mas, segundo ele, a paz só aparecerá depois que cada um descobrir a sua verdade interna. “O homem necessita descobrir-se. Caso contrário, a paz não virá”, acredita. Fora suas meditações, o profeta é como qualquer outro homem. Afinal, não é nenhum Deus. Tem fome, sente sede e necessita do capital para sobreviver.  O que muda são apenas suas atitudes. E os caminhos pelos quais percorre. É um homem de paz, em busca de paz. Mas pelo que se vê, ao invés de caminhar sobre as flores, vem encontrando vias repletas de espinhos. 

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Casarim encerrou sua jornada. Pedro Henrique começará a dele

O empresário Iderlando Casarim, após ter queimado mais de 50% de seu corpo, e ficar três meses internado, não resistiu e morreu na manhã de domingo. No dia do acidente, ele foi socorrido pela jovem Ranielle Batista dos Santos que, mesmo grávida, teve atitude para abafar as chamas de seu corpo com um cobertor. Quando os destinos de duas pessoas resolvem ser cruzados, ainda mais com ações nobres, o mundo parece ficar mais saudável.  



Dilmércio Daleffe


Foi uma segunda-feira amargurada para Ranielle Batista dos Santos. A menina de apenas 19 anos acordou cedo em Luiziana, apanhou o ônibus e seguiu rumo a Campo Mourão, onde trabalha numa loja de roupas. Ao chegar à empresa, notou que do outro lado da rua, uma placa de luto estampava a corrente do Sushi bar. Acontece que ali mesmo, ainda em junho deste ano, ela socorreu o empresário Iderlando Casarim. Ao mexer com álcool, ele teve mais de 50% do corpo em chamas. Então, correu para rua tentando apagar o fogo. Ao vê-lo, desesperado, a menina não pensou duas vezes e pegou algumas cobertas para tentar abafar as chamas. E conseguiu. Uma ação heróica, ainda mais para uma grávida de seis meses. Mas ontem, ela viu que toda sua atitude foi em vão. O empresário não suportou os ferimentos e, depois de quase três meses lutando pela vida num hospital de Londrina, não resistiu.  

“É um dia muito ruim pra mim. Mesmo que meu filho venha a nascer hoje, não terei como comemorar”, revelou a jovem ontem. Abalada com a morte do empresário, ela nem ligou a caixa de som que, todos os dias, é ligada com música em frente ao estabelecimento onde trabalha. Ranielle explica que, embora não tivesse uma amizade com Casarim, os dois se viam quase todos os dias. Eram vizinhos e colegas de trabalho. Mas o fato de ter ajudado o empresário, naquela manhã de junho, de alguma forma, aproximou os dois. “Vou carregar aquela cena, o seu sofrimento, comigo para o resto da vida. Tento, mas não consigo esquecer o drama que ele passou”, diz Ranielle.

Ainda ontem, a menina foi até o velório de Casarim. Lá, ela foi abraçada e muito elogiada pelos familiares do empresário. No entanto, foi Ranielle quem acabou consolando a família. Disse para que não chorassem, porque Deus sabia o que estava fazendo. Hoje, ela está numa gestação de oito meses e três semanas. “Posso ter meu bebê a qualquer momento”, explicou. Agradecido com sua atitude, o irmão de Iderlando, que mora em Londres, na Inglaterra, ajudará com presentes ao recém nascido. Não se trata de compaixão, mas sim, gratidão. De rosto angelical, Ranielle mede apenas 1,59 de altura. Mas pode considerar-se uma gigante nas atitudes. Católica, acredita fielmente em Deus, e, nos anjos. Nos próximos dias, ou horas, a moça ganhará seu primeiro filho, Pedro Henrique. São as contradições do mundo. Enquanto Casarim cumpriu sua jornada, uma nova vida está surgindo. Pedro Henrique virá em forma de um anjo, nos braços de outro anjo.
  

O fato

Empresário do ramo da gastronomia, Iderlando decidiu eliminar o mato em frente ao seu restaurante de uma forma diferente: com álcool. Primeiro jogou uma quantidade e depois ateou fogo. Como não deu certo, jogou mais com o recipiente próximo ao corpo. Acontece que as chamas ocasionaram a explosão do líquido que segurava. Como resultado, teve cerca de 50% do corpo queimado. Sozinho no local, Iderlando teve tempo para proteger o rosto e correr em busca de socorro até a rua. Seus gritos eram ouvidos longe. Naquele instante muita gente viu a cena, mas não tiveram atitude suficiente para ajudar. Apenas duas pessoas socorreram o empresário: primeiro Ranielle e depois um homem ainda não identificado. Juntos, os dois abafaram as chamas do corpo com a ajuda do cobertor levado pela moça.

Iderlando Casarim viveu intensamente

Pode-se dizer que Iderlando viveu para seus amigos. Não tinha muitos, mas cultivava cada um deles, sempre, com um belo sorriso. Vaidoso, era impecável com suas camisas. Também adorava um bom perfume. E desta forma, também era um galanteador. Ele até dizia que se achava parecido com o ator espanhol Antônio Banderas. Brincalhão, adorava uma piada. Mesmo em tempos ruins, sem grana, dava um jeito. Ele não esquentava muito a cabeça. Já fez de tudo na vida. Mas por último havia sido vendedor de carros e dono do restaurante Sushi Bar. Deixou apenas um filho, Bruno, hoje com 23 anos. Iderlando foi intenso enquanto viveu. Seu sorriso, o alto astral, deixarão saudades.   


domingo, 1 de setembro de 2013

Fernanda e Renato casaram-se no hospital


Renato era um cara como tantos outros até pouco tempo. Namorava, trabalhava e vivia intensamente todos os dias de sua vida. Mas há quase um ano, levou um tiro no pescoço. Ficou 11 meses internado entre a vida e a morte. Depois, descobriu ter ficado tetraplégico. Saiu do hospital esta semana. Mas antes, casou-se com a mulher que ama, Fernanda. A cerimônia aconteceu entre os aparelhos e camas do Hospital Cajuru, de Curitiba. Renato e Fernanda estão voltando pra casa.



Dilmércio Daleffe

Fernanda e Renato se conhecem há seis anos. Da amizade brotou a paixão. Ela, trabalhadora de uma gráfica. Ele, operário da construção civil. Tinham uma vida simples, longe de regalias e do luxo das famílias poderosas. Pobres, e sem recursos, construíram sua casa aos fundos do lote dos pais dele. Um lar sem tijolos. Apenas com paredes de compensados. Mas no seu interior, um teto feito à base da honestidade e da sinceridade de um grande amor. Mas há 11 meses, a vida parou. No dia 5 de outubro de 2012, numa ação inexplicável, um homem drogado atirou contra Renato. O disparo no pescoço o deixou tetraplégico. A partir daí, tudo mudou, com exceção da paixão e do amor.

Fernanda Nalon, aos 20 anos de idade, é obcecada pelo companheiro. Tinha apenas 14 quando uma paixão avassaladora a uniu com Renato. Destinos cruzados, vidas passadas, seja lá o que tenha sido, foi forte demais. Renato Tarachuk tem hoje 27 anos. Sempre foi pobre, mas honesto. Desde que ajoelhou-se a ela, sabia que o futuro seria ao seu lado. E foi desta maneira, que numa tarde de domingo, no município de Bituruna – Sul do Paraná – os dois saíram juntos para ir até a chácara de um amigo. Estavam namorando, rindo, se distraindo, quando aquele homem drogado atravessou seus caminhos. Armado, apontou o revólver e, sem mais nem menos, numa grande infelicidade, disparou contra o pescoço de Renato. Após ser atingido, ainda saiu do carro e caminhou por alguns metros. Mas naquele instante, a vida tomaria um rumo jamais imaginado.    

Em estado grave, Renato conseguiu uma vaga na UTI do Hospital Cajuru, da Pontifícia Universidade Católica, de Curitiba. Lá permaneceu sob os cuidados de uma equipe médica dedicada, contradizendo hoje, o que parte da população brasileira condena sobre médicos sem instrução, mercenários ou até, sem caráter humanitário. Foram 11 meses numa batalha entre a vida e a morte, com inúmeras paradas cardíacas. Vivendo entre a esperança e a dúvida, entre as lágrimas de dor, e de felicidade. Mas na guerra fria da vida, sobrou e prevaleceu o amor.

Quase um ano dentro do hospital, Fernanda viajou poucas vezes à sua casa. Abriu mão de sua vida particular para permanecer ao lado do cara que amava. Naqueles corredores sem fim, não conseguiu enumerar suas orações. Enquanto rezava, Renato batalhava pela própria vida. Foi um guerreiro por si só, como dizem os médicos. “Somos muito apegados a Deus. Não fosse ele, Renato não estaria vivo”, acredita Fernanda.

Mas diante de tanto sofrimento, e do dia em que ouviu as duras e frias palavras de que não mais andaria, Renato se revoltou. Ele não consegue perdoar aquele sujeito que disparou o gatilho. Renato é mais uma vítima da violência urbana. Foi mais uma estatística das atrocidades cometidas num país sem leis severas, não respeitadas, não cumpridas. “Queria que aquele homem estivesse no meu lugar, passando por tudo o que estou vivendo. Ele acabou com minha vida”, afirmou.

Um casamento no hospital

Depois de 11 meses internado, Renato teve alta esta semana. Ele está feliz demais. Afinal, nos últimos dias conseguiu sua aposentadoria, teve alta médica e, ainda, casou-se dentro do próprio hospital. A coisa foi mais ou menos assim: sensibilizados com a paixão do casal, a família de outro interno mobilizou médicos e enfermeiros para a cerimônia. Então de uma “vaquinha” surgiram as alianças, a festa, o vestido de noiva, o terno, o salão. As enfermeiras ainda organizaram o chá de panela, também no hospital. Um pastor fez a cerimônia. Teve padrinhos, festa animada, salgadinhos e muita emoção.

“Foi tudo o que queríamos. Não tínhamos condições, e recebemos de coração. Agora voltamos a nossa casa, casados”, disse Fernanda. A equipe médica também participou da cerimônia. Afinal, o casal transformou o hospital em sua segunda casa, ficando a relação médico paciente quase familiar.

Um dos profissionais mais próximos de Renato foi o médico intensivista Juliano Gasparetto. “Há mais ou menos um ano o Renatão ensinou a toda equipe o significado da palavra superação. Após lutar contra o que seria considerado impossível para muitos, ele teve que reaprender a respirar novamente, e conseguiu”, disse. Gasparetto lembra que foi alvo de muitas brigas com o paciente, principalmente, no início. “Imagine a sua revolta depois de saber que não iria mais andar. E a primeira pessoa a vê-lo todos os dias era eu. Então era eu quem ouvia sua indignação”, lembra. Numa metodologia de humanização, o casal participava de todas as decisões do tratamento. “Eles opinavam e interagiam o tempo todo. Inclusive, a família ficava na UTI. Participavam de tudo”, explica o médico.

Renato acaba de deixar o Cajuru. Devido ao ferimento da bala, terá que viver com traqueostomia. Para melhorar sua qualidade de vida, ganhou um respirador, que o acompanhará onde for. Segundo ele, mesmo brigando inúmeras vezes com o intensivista, Gasparetto está além de um simples médico. “É um anjo da guarda que carregarei comigo pro resto da vida. Me ajudou em todas as decisões. É um grande profissional. Um grande médico. Um amigo”, disse.  


Por fim, Fernanda e Renato agora retornam à sua casa. Saúde é o que todos desejam. Na casinha simples de compensados, lá permanecerão. Juliano Gasparetto continuará sua jornada diária entre lençóis, aparelhos e pacientes sobre as camas de hospital. Enquanto isso, na cadeia de Guarapuava, repousa o indivíduo que ocasionou toda esta história. Apenas mais uma vítima do comércio de drogas. Um usuário em potencial. Um reflexo do desleixo e descaso da violência urbana das cidades brasileiras. Em pouco tempo, ele estará nas ruas novamente. E quantos Renatos ainda pagarão por um país sem leis mais severas?



O desabafo de um médico

“Após inúmeras paradas cardíacas por disautonomia, um desmame ventilatório que gerava discussões e "brigas" entre eu e o Renato, meus residentes e meus amigos da fisioterapia, sempre comigo "rabugenteando" é claro, dias, noites e fins de semana o tratando, hoje mais uma lição e duas palavras simples: amor e um muito obrigado dito pelo Renato e pela Fernanda, foram o suficiente para que eu repensasse vários dos meus conceitos e o motivo pelo qual saímos de casa todos os dias para trabalhar. Superação e muito amor pelo que faz; porque temos o treinamento para fazer o que ninguém faz - devolvemos as pessoas que já estiveram entre a vida e a morte para suas vidas, para serem felizes.

Não há medicina, não há o menor sentido no que fazemos, se a palavra humanização não for a regra número um. Apesar de sermos uma unidade de trauma e termos tratado vários pacientes com trauma raquimedular, o Renato, pra mim, é especial.
Depois de a mídia tentar jogar a Medicina Intensiva na lama com a sensacionalista história do Hospital Evangélico, hoje tivemos a oportunidade de mostrar o outro lado do que nós fazemos no dia-a-dia. Não foi na rede privada, Einstein ou no Sírio, foi no SUS mesmo; o mesmo SUS que o Governo tenta dizer que os médicos brasileiros não querem trabalhar. Parabéns a todos os profissionais do time do Hospital Universitário Cajuru e ao ator principal desta linda história, o Renato”.