quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Felício morreu distante da felicidade


Felício morreu sem Deus, sem misericórdia e sem saúde. Era um cara normal, de apenas 50 anos. Desenvolveu obesidade mórbida depois de uma desilusão amorosa. Diante de tanto sofrimento, não conseguiu que identificassem os sintomas que o levaram à morte. Agora ele se foi. Seus sonhos acabaram. A família clama por justiça. 




Dilmércio Daleffe

No dicionário de nomes próprios, Felício significa feliz e indica uma pessoa de personalidade agradável e generosa. Isso na teoria. Na prática, Felício Jorge Franco Abdalla, teve motivos de menos para não conhecer o termo felicidade. Morto na segunda-feira, ele foi sepultado na manhã de ontem, numa cerimônia simples, sem reconhecimentos e sem glórias. De origem síria, o homem morreu sozinho, depois de uma guerra contra ele próprio. Lutando contra a balança, pesava 270 quilos. Quase não mais se locomovia. Morreu pobre, sem amigos, sem Deus e, de acordo com a filha, Liz, desassistido pela Saúde brasileira. Seu quadro era assustador. Com feridas abertas nas pernas, larvas o consumiam. Fora isso, apresentava problemas cardíacos e respiratórios. Mesmo a filha clamando por uma internação, médicos insistiam dizendo ser desnecessária. E, diante de um festival de equívocos, Felício acabou morto. Morreu por falência múltipla de órgãos, edema agudo no pulmão e uma pneumonia grave.

Os problemas de Felício tiveram início há quase seis anos. Com tendência para engordar, ele desenvolveu a conhecida obesidade mórbida depois de ter se separado da amásia, com quem teve uma filha, Sabrina. Acontece que não conseguia suportar o fato de ficar sem a mulher. A partir de então, passou a descontar a tristeza e solidão na comida. Ainda “gordinho”, iniciou uma jornada sem volta. Comia tanto que seu peso explodiu. E as consequências logo apareceram. Experiente motorista de caminhão, afastou-se do trabalho e, após tanta insistência para voltar com a mulher, decidiu deixar a cidade de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Foi morar com um irmão, num sítio no município de São José, em Santa Catarina.

Lá, com feridas nas pernas ocasionadas pelo peso, passava a maior parte do tempo sobre a cama. Nas idas e vindas até Ponta Porâ, novamente em busca de sua paixão, perdeu uma cirurgia bariátrica. E como sua situação só se agravava, atendeu ao pedido de sua outra filha, Liz Dalmi Abdalla de Jesus. Fruto do primeiro casamento e residente em Campo Mourão, ela o chamou para vir morar na cidade. Atendendo ao seu desejo, Felício deixou as areias de Santa Catarina há apenas três meses e veio até as terras vermelhas do Paraná. Passou a morar com a moça, seu genro e duas netas. Mas aqui as coisas só se agravaram.

Liz conta que mesmo cuidando do pai, as feridas das pernas não cicatrizavam. Um dia, ao verificar sua pele, notou ovos de insetos que saiam dos machucados. Então o levou até o postinho de saúde e lá descobriram que uma das pernas estava repleta de larvas. Elas consumiam o membro, o que fazia exalar um cheiro forte, podre. O quadro era a explicação da febre incessante do pai. Tomando medicamento para combater as larvas, sua cama amanhecia com sangue e “bichos” aos montes, conta a filha.

Mas na última semana, mais precisamente na quarta-feira, dia 11, Liz decidiu ir até o posto de saúde novamente e pedir uma internação ao pai. É que agora ele reclamava de falta de ar. Segundo ela, do posto, Felício foi encaminhado ao 24 horas. Lá, após uma espera de quase oito horas, uma médica teria negado a internação. “Ela disse que não era caso para internação. Disse que existiam casos mais graves. Se referia apenas as larvas de sua perna. Mas em nenhum momento falou sobre a falta de ar. Ninguém examinou ou pediu exames de seu pulmão”, afirmou. Sem receber a atenção que queria, a família voltou para casa. Liz disse ter se sentido humilhada, principalmente, por não ter conquistado um direito básico a todo cidadão brasileiro: saúde.

Na quinta, sexta e sábado, Liz levou o pai até o posto de saúde para tomar os remédios (Cefalexina) receitados pela equipe do 24 horas. Mas a febre voltou forte e a falta de ar só piorava. No domingo, Felício caiu de sua cama e, não conseguindo mover as pernas, Liz acionou a equipe de socorristas do 193. Com o peso, eles não conseguiram removê-lo. Chamaram mais dois policiais militares para ajudar. Mesmo assim, ainda foram necessários outros homens do Corpo de Bombeiros para leva-lo até a Central Hospitalar. O cheiro era tão forte que os socorristas adentraram a casa de Felício com máscaras. “Suas pernas estavam apodrecendo. O cheiro era forte demais. Além disso ele começou a ter bolhas e secreções em todo o corpo. A situação do meu pai não era nada boa”, disse Liz. Segundo ela, ele estava tão deprimido com a própria situação que culpava Deus. “Ele dizia que Deus havia o abandonado”.

Levado até o hospital, Felício não suportou e morreu na manhã de segunda-feira. De acordo com a certidão de óbito, morreu por pneumonia grave. Ali, naquela cama fria de hospital, todos os sonhos do ex-motorista de caminhão haviam sido encerrados. Ele tinha o desejo de melhorar a vida das filhas, dar um futuro decente as netas. Mas não teve tempo. Deixou a vida aos 50 anos de idade. Para a família, a saúde brasileira o abandonou.


“Nada vai trazer meu pai de volta. Eu sou pobre e também pago impostos e vejo que nada se faz nesta cidade. Tudo continua sempre igual. Vemos nas eleições o povo se vendendo por um tanque de gasolina, uma cesta básica e nada muda de novo. Até quando vamos ver a mesma cena”? questiona Liz. Ela denunciou o caso ao Ministério Público e aguarda justiça. A secretária de Saúde de Campo Mourão, Patrícia Chandoha, foi procurada ontem e preferiu não se manifestar. Segundo ela, vai verificar a situação, ver os pareceres e prontuários antes de falar sobre o assunto.

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