terça-feira, 31 de maio de 2011

100 anos, sem Boiadeira


Dilmércio Daleffe

A Estrada Boiadeira, BR-487, completou em 2010 um século de vida desde a sua abertura, em 1910. No entanto, foi só a partir de 1950 quando a população iniciou o movimento para que ela fosse pavimentada. Desde então, já se passaram 60 anos e a rodovia, que liga Campo Mourão a Cruzeiro do Oeste, continua esquecida pelas autoridades. Durante as quatro últimas décadas, ela foi “usada” e prometida por deputados, governadores, ministros e até presidentes. Muitos palanques eleitorais foram levantados a base da Boiadeira. Ao contrário de sua conclusão, o que se viu foram recursos do povo sendo perdidos pelo tempo, num já rotineiro cenário clássico de desperdício do dinheiro público.
Durvalino Costa veio de longe, do interior de São Paulo, com a idéia de ganhar dinheiro com a pavimentação da Boiadeira. Ele abriu uma borracharia na comunidade de Nova Brasília, as margens da rodovia há quase 25 anos. É bem verdade que ele viu os 33 primeiros quilômetros serem asfaltados. Mas isso foi insignificante para que o negócio da borracharia desse certo. Afinal, o restante da estrada não foi terminado. Em resumo, ele morreu há cerca de quatro anos, sem ganhar dinheiro e o pior, sem presenciar a rodovia ser concluída. Hoje, além de ser personagem na trágica história da estrada, seu túmulo está a poucos metros do asfalto da Boiadeira.

O caso de seo José é apenas um dos tantos outros sonhos que acabaram se esvaindo pela demora da Boiadeira. Afinal de contas, é muito tempo de espera para uma importante rodovia. O asfaltamento da estrada, uma das principais reivindicações da região, foi iniciado em 1986 pelo governo do estado. Porém a obra foi paralisada logo em seguida e, a erosão acabou destruindo aproximadamente 40% dos serviços de terraplanagem que já havia sido executado no trajeto. Ou seja, o dinheiro utilizado perdeu-se com o tempo.
O sitiante Manoel Ozório de Oliveira mora há 45 anos as margens da Boiadeira. Quando chegou ao local, tudo era lama e poeira vermelha. Hoje, apesar de ter asfalto em frente a propriedade, teme não viver o suficiente para ver a estrada inteira concluída. “Tenho fé de viver até lá”, disse.




Estrada trará mais movimento
Aberta por volta de 1910, a Estrada Boiadeira, inicialmente, serviu para a condução de gado comprado no Mato Grosso para a engorda nas pastagens do Paraná. Desde 1950, Campo Mourão e região reivindicam o seu asfaltamento. Além de beneficiar uma vasta região, a pavimentação entre Cruzeiro do Oeste e Campo Mourão vai marcar a consolidação do Corredor Setentrional de Exportação. Ou seja, com o término do conjunto de pontes em Porto Camargo, boa parte da produção do Mato Grosso do Sul deverá ser canalizada pela Boiadeira até o Porto de Paranaguá. Campo Mourão e região só tem a ganhar com uma movimentação intensa de tráfego no trecho.
Em março de 2000, em visita a rodovia, o então ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, afirmou que a Estrada Boiadeira, trecho de 73 quilômetros entre Campo Mourão e Cruzeiro do Oeste – seria concluída até 2001. Não foi como continua sendo a principal promessa nos palanques e comícios de toda a região. Este ano a estrada certamente voltará a ser prometida. Mas até quando?

Sem previsões para ser terminada
Do total de 73 Km, apenas 33,5 deles estão completamente concluídos. Outros dois lotes continuam sem expectativa de conclusão, mesmo com valores de R$4 milhões já terem sido liberados há mais de 10 anos. De acordo com Rolando Marreta, Chefe do Serviço de Engenharia do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), o Paraná não pode parar. “Trata-se de um compromisso do governo com o estado. O mais breve possível vocês terão novidades sobre a Boiadeira”, afirmou.
Segundo ele, todo o projeto restante para a sua conclusão está sendo refeito, principalmente, em virtude da Reserva das Perobas, uma das mais importantes reservas florestais do estado que margeia a rodovia. Marreta também informou que os valores, assim como o prazo para a sua conclusão, definitivamente, ainda não existem. “Não podemos arriscar valores e muito menos um prazo”, destacou.

Demora contribuiu com danos ao meio ambiente
Uma ação do Ministério Público contra o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DER) está propondo a justiça uma indenização milionária, cerca de R$66 milhões, pelos danos causados ao meio ambiente devido a má conservação da estrada ao longo dos anos. No trecho de 73 quilômetros, entre Campo Mourão e Cruzeiro do Oeste, um laudo técnico indicou que o abandono da estrada ocasionou o assoreamento de rios e córregos que atravessam a via. Alguns estão deixando de existir. Além dos problemas ocasionados á água, vegetação e o solo também continuam sendo prejudicados. Mesmo se tratando de uma rodovia federal e de responsabilidade do extinto DNER, a ação foi movida contra o DER por ter sido ele o órgão que tomou a iniciativa da obra, ainda em 85. O laudo também aponta a falta de um projeto de retenção hídrica na estrada como sendo uma das principais causas de todo o problema ambiental.



Números
• 73 Km é a extensão total da Estrada Boiadeira, que liga Campo Mourão a Cruzeiro do Oeste.
• 25 anos é o tempo que a obra da estrada está abandonada. A construção foi iniciada em 85, com serviços de terraplanagem
• 100 anos completa a estrada este ano, contando a partir de sua abertura, para a passagem de gado.
• 60 anos é o tempo de espera para a sua pavimentação, desde que a população regional iniciou os movimentos em prol da Boiadeira

Magia negra invade cemitérios clandestinos




Dilmércio Daleffe
Antigos cemitérios localizados ao redor de Campo Mourão acabaram se transformando em “palco” para a prática da magia negra. Considerados clandestinos, com o passar do tempo, eles foram deixados de lado. Hoje, o que se vê é abandono. Distantes dos olhos vigilantes do município, a turma do vermelho e preto foi à forra. Garrafas de cachaça, velas coloridas, roupas, vasos e mais uma infinidade de objetos estão jogados nos campos santos. É tanta quinquilharia que o cemitério do KM 123, próximo a Estrada Boiadeira, mais parece um velho armazém abandonado.

Cerca de 85 corpos ainda continuam no Km 123. Lá, o que se vê pouco se assemelha aos filmes de terror holywoodianos. Aqui o cenário é mais assustador. Com as lápides quebradas, túmulos sem manutenção e a falta de um zelador, o local dá medo. O capim seco já cobre o que restou das sepulturas, ficando difícil localizar os túmulos. Fora isso, muito material de magia negra está espalhado pelo espaço, não sendo poupados nem mesmo os mortos. Em muitas carneiras se encontram copos e garrafas de pinga. Espécies de gaiolas – vasos de barro foram localizados uns dentro dos outros e, ainda, virados para baixo – foram deixadas aos montes. Se existia algo preso sob eles, agora está solto. Até uma roupa em preto e vermelho, com capuz e tudo, foi deixada para trás.




Além do São Judas Tadeu, outros cinco campos santos serviram para abrigar os mortos da cidade. Um dos primeiros foi o do Km 123, depois vieram o de São Benedito, de Piquirivaí e o do Km 31, também na Boiadeira. O último, já desativado, estava próximo ao Jardim Industrial. Juntos, eles surgiram através da iniciativa das próprias comunidades locais, que sentiam necessidade em enterrar os parentes próximos de suas casas. Atualmente, somente o São Judas Tadeu é quem recebe corpos. Todos os demais foram impedidos de realizar sepultamentos.

De vez em quando, a prefeitura realiza remoções de corpos destes cemitérios para o São Judas Tadeu. A última delas aconteceu há poucos dias no Km 31. Lá, a cena não é muito diferente do vizinho Km 123. Também abandonado, o mato toma conta de tudo, embora ainda tenha marcas de uma quase recente roçada. São túmulos antigos, mal tratados pelo tempo e esquecidos por uma grande parte das famílias. Muitas delas nem moram mais no município. Uma capelinha em madeira ainda resiste e mantém uma espécie de altar com restos de velas, flores de mentira, alguns vasinhos e muita sujeira. Ali se comprova o abandono geral. Até as flores de plástico murcharam.




De acordo com informações, a idéia é que em alguns anos, todos os corpos destes cemitérios sejam transferidos definitivamente para o São Judas Tadeu. Ricardo Iatrenski, hoje com 63 anos de idade, possui 11 parentes enterrados no campo santo do Km 123. Segundo ele, era um local bastante visitado até a década de 80. No entanto, agora, tudo é desolação. Por causa da magia negra e vandalismo, ele solicitou esta semana a remoção de todos os parentes. “É muito saravá, gente destruindo tudo. Ninguém mais respeita o cemitério”, disse. Dias desses, ao fazer uma visita ao túmulo dos dois filhos ali enterrados, se deparou com potes de barro, sangue e uma faca. Até marcas de bala de revólver estão na cruz principal do cemitério.

Mas se o caminho é a extinção dos cemitérios considerados clandestinos, o que fazer para ampliar o velho São Judas Tadeu. Com superlotação, até algumas de suas ruas já estão sendo diminuídas para a abertura de outras covas. Embora não se saiba, ao certo, até quando vai a sua “vida” útil, já é sabido que as vagas estão diminuindo a cada dia. Hoje, cerca de 50 corpos são sepultados mensalmente no local. Muitos corpos para pouco espaço. E a morte não espera ninguém.

Da poeira vermelha aos arranha céus de Hong Kong




Ana Paula, Rodrigo (ao meio) e Dilmércio Daleffe

Dilmércio Daleffe/ matéria publicada no Jornal Tribuna do Interior de Campo Mourão - junho de 2010

Ele não nasceu por acaso como dizem os góticos. Esperto e inteligente, afrontava os professores pela manhã enquanto fazia arte durante a tarde. Era praticamente um moleque de rua. Hoje, aos 32 anos de idade, Rodrigo Daleffe Aires já é um senhor do mundo. Deixou a poeira vermelha para respirar o sucesso do outro lado do mundo, mais precisamente em Hong Kong, na China, onde se transformou no Vice-Presidente de Operações Globais do Banco Santander. Na gíria, ele é o “cara”.

Rodrigo é um daqueles raros casos que se pode contar na ponta dos dedos. Afinal de contas quantos mourãoenses legítimos conseguem fazer sucesso no exterior? Com todo respeito aos nerds – indivíduos que se corroem nos estudos – Rodrigo jamais foi um deles, longe disso. Ele sempre foi, e isso sim, aplicado na escola, na faculdade, nas aulas de inglês e até na catequese. Deixou para trás aquele estigma que só se da bem na vida os aterrados em lições de casa, tarefas. No seu caso, a aplicação e a disciplina aos estudos foi o que mais contou.

Rodrigo é de família tradicional de Campo Mourão. Dirce Daleffe Aires é a mãe, séria e ao mesmo tempo de bem com a vida. Sempre preocupada com o filho, a quem chama até hoje de “nene”. Luciano Andrade Aires, o “Ceará”, é o pai. Foi o cara responsável pelo seu direcionamento na vida. Tranqüilo, gozador, mas disciplinador. Pegue as maiores qualidades dos dois e imaginem o filho. Uma das maiores características de Rodrigo é sem dúvida nenhuma o seu senso de humor. Até nisso ele é aplicado.

A sua trajetória começou ainda nos bancos escolares de Campo Mourão, Santa Cruz e Integrado. Fez intercâmbio durante um ano nos Estados Unidos. Na década de 90 morou em Curitiba, onde fez o segundo grau. Foi para São Paulo onde passou no concorrido vestibular da Universidade de São Paulo, no curso de Administração (FEA). Praticamente ao mesmo tempo já iniciava um estágio no Citybank. Depois disso chegou ao Banco Santander, onde está até hoje. "Fui promovido por diversas vezes e, quando cheguei aos 24 anos me convidaram a mudar para o México", comenta. Aos 32 anos, já conhece 42 países. Destes, trabalhou em 17, incluindo Porto Rico e Espanha. Desde 2008 está em Hong Kong.

Rodrigo fala inglês e espanhol fluentemente e agora está treinando o mandarim, uma das línguas da China. Muitos acreditavam que jamais casaria. No entanto, durante os anos em que morou em San Juan, conheceu a atual esposa, Nanette. Há pouco tempo se casaram nos Estados Unidos. Em sua profissão, Rodrigo tem o cargo de Vice-Presidente de Operações Globais para a América Latina. Basicamente, dá suporte comercial e financeiro a empresas sul americanas interessadas em operar na Ásia, e vice-versa. Ou seja, ele é um alto executivo do Santander que viaja os cinco continentes a hora que for preciso. Para esta entrevista, ele falou de Lima, no Peru. Um dia depois já estava em Nova Yorque. E assim ele vai, deixando os rastros do sucesso.

Na época das vacas magras

Durante os anos 90, quando estudou em Curitiba, Rodrigo saía de casa pela manhã e ia a pé até o Colégio Positivo. Eram aproximadamente 900 metros de percurso. Acontece que em uma das esquinas se deparou com um ladrão de carteiras, destes iniciantes na profissão. Armado com um canivete ele deu voz de assalto e pediu dinheiro. Rodrigo deu o que tinha, algo em torno de R$10. Assustado, Rodrigo mudou o trajeto. Alguns dias depois em outra esquina, os dois se reencontram novamente. Desta vez o marginal roubou sua blusa e foi embora. A trajetória foi outra vez modificada, mas não adiantou. O bandido era persistente. Num terceiro encontro, o bandido o reconheceu e até brincou com ele: “o que você tem aí pra mim hoje”? Levou o tênis. Quando se encontraram pela quarta vez o ladrão se rendeu. “Você de novo? Vai embora, chega de você”, disse. Esta foi a última vez que os dois se viram.

Humanos

Desde o início do ano, Dilmércio Daleffe vem coletando registros da população de Campo Mourão. São flagrantes do cotidiano de um povo acostumado a vida simples. Longe das grandes cidades, os mouraoenses levam uma vidinha tranquila, como sempre foi.














segunda-feira, 30 de maio de 2011

Os engraxates

Dilmércio Daleffe
Os tempos já não são mais os mesmos. Quem um dia imaginaria que o presidente americano seria negro. Que Osama Bin Laden fosse encontrado. Que o PT governasse o país. Máquinas de escrever e vinis – Long Plays – fossem “sepultados”. Que uma rede de computadores ligasse o mundo. Que os engraxates de Campo Mourão praticamente desapareceriam. Isso mesmo. Pra quem não se lembra, há pouco mais de 10 anos, a área central da cidade era tomada por meninos com suas caixinhas dependuradas sobre o ombro. Hoje, resumem-se em apenas dois. Um deles ainda é importado de Iretama.

Já foi o tempo do romantismo, quando as pessoas tinham tempo para, sentadas nos bancos da praça, parar um pouco e engraxar os sapatos. Era uma época em que a prosa e a boa conversa imperava. Hoje, tudo é correria. Os tempos de ouro não voltam mais. No entanto, a profissão ainda perdura. Praticamente anda de muletas. Wesley Borges e Adenilson de Amorim Barbosa são os dois únicos sobreviventes deste escasso mercado de trabalho, pelo menos em Campo Mourão.

O Profissional




Adenilson, aos 33 anos, é conhecido como “Profissional”. Trabalha de terno e gravata todos os dias, quando deixa Iretama pela manhã para atuar em Campo Mourão. Trata-se de um engraxate show. Com crachá no peito, ele se orgulha em ter alvará da profissão, tendo o direito de adentrar em estabelecimentos públicos da cidade. “Fiz cursos e aprendi muitas coisas”, diz. O sujeito é realmente profissional. Ele tem até algumas regras: não pegar nada dos outros; respeitar os mais velhos; andar bem vestido; se identificar; e nunca desistir da profissão. “Decidi que é isso que quero da minha vida”, afirma.

“Profissional” é solteiro e trabalha como engraxate desde os 10 anos de idade. Segundo ele, vai morrer atuando na atividade. Como Iretama é pequena, já, há sete anos, vem para Campo Mourão ganhar sua grana. De acordo com ele, em média, faz 10 engraxadas ao dia, rendendo cerca de R$30. “Aqui todo mundo já me conhece. Trabalho até dentro do Fórum”, disse. Ele explica que um bom engraxate não espera o cliente. Vai atrás. Por isso o seu sucesso. Para voltar para casa, quase sempre consegue uma carona, afinal, trata-se do “Profissional”.

O religioso



Aos 21 anos, Wesley é outra figura no centro da cidade. Com sua caixinha, ele fica na praça da matriz, aguardando os clientes. Religioso, carrega um crucifixo no peito e outro amarrado em uma das mãos. Também atua com gravata e roupa social. Conta ele que aprendeu a profissão ainda aos nove anos de idade, quando ainda vendia sabão caseiro pelas ruas da cidade. Logo, passou a exercer a atividade até os 13 anos. Depois disso foi morar em São Paulo, passando a trabalhar como garçom.

Ao retornar a Campo Mourão, recentemente, não encontrou emprego, sendo forçado a voltar à antiga profissão. “Trabalho com muito carinho. Gosto do que faço”, diz. Com o dinheiro arrecadado, come e paga um quarto de hotel. Mas quando a grana não dá, estende a coberta no chão e dorme por aí. Já a comida, isso nunca falta. “Às vezes peço. Não é feio. Quando a pessoa é inteligente, sofre menos”, explica. Wesley cobra R$3 por par de sapato. Ganha entre R$15 e R$30 por dia. Ele diz que está bom. As dificuldades da vida acontecem porque decidiu sair de casa ainda aos 15 anos. Hoje, é ele e Deus.

O cara diz que a profissão o ensinou muitas coisas, a começar pela humildade. “Desta atividade, ou de outras, como num carrinho de sorvete, sai um grande homem. Aqui aprendemos dar valor ao trabalho”, garante. Ele acredita que o desaparecimento dos engraxates se deve, em grande parte, a proibição de menores trabalharem. “Não devia ser assim. O menino que não aprende a trabalhar desde cedo, acaba fazendo coisa errada”. Desta maneira, Wesley e Adenilson vão tocando a vida. Enquanto existirem sapatos, lá estarão os dois.

Profissão em extinção

Engraxate é o homem responsável pelo polimento e limpeza de sapatos. A tradição remete ao ano de 1806, o nascimento do ofício de engraxate, quando um operário poliu em sinal de respeito às botas de um general francês e foi recompensado com uma moeda de ouro por isto. Durante a Segunda Guerra Mundial apareceram os “sciusciàs”, garotos que para ganhar qualquer coisa lustravam as botas dos militares, além de terem cópias de jornais, goma de mascar e doces.

Ao término da guerra desapareceram o sciusciàs e também os engraxates de Nápoles, no início dos anos cinqüenta eles eram apenas mil. Hoje em dia, caminhando pelas ruas napolitanas, ocasionalmente, pode-se encontrar algum.Após a imigração italiana aparece, por volta de 1877, na cidade de São Paulo, os primeiros engraxates. No início eram poucos, de 10 a 14 anos, todos italianos e percorriam as ruas, das 6 horas da manhã até a noite, com uma pequena caixa de madeira com suas latas, escovas e outros objetos. As cadeiras de engraxate foram inventadas por Morris N. Kohn em 1890. O engraxate hoje em dia é uma profissão em via de extinção.

Medo e violência na Rua da Paz



Dilmércio Daleffe
A noite cai mais uma vez e os moradores da Rua da Paz, no conjunto Mendes, começam a rezar. São moradores humildes, sem luxo. Trabalhadores com uma rotina normal. Acordam cedo, diariamente, na luta pelo bem estar de suas famílias. É somente isso, não pedem nada mais. O nome da rua é bem sugestivo, tranqüilo, gostoso de pronunciar. No entanto, somente no último ano, a via bem que poderia ter sido chamada de “Rua da Guerra”. Foram dois assassinatos ali, num trecho de pouco mais de 300 metros, não mais que 50 casinhas populares. Hoje, o nome “Paz” está ameaçado e o orgulho dos seus residentes em dizer que ali moram, ficou para trás. Foi enterrado junto às perfurações dos dois cadáveres. Com medo, nenhum dos entrevistados a seguir quis ser identificado. Trata-se de uma questão lógica de sobrevivência, pura e simples.

O fardo pesado e ainda sujo de sangue dos crimes comove a rua. As dezenas de crianças que ali brincavam todos os dias, já convivem, de certa maneira, com o clima angustiante dos fatos. Elas são inocentes, pouco sabem das coisas, mas refletem a vida local. Na verdade representam a esperança em dias melhores, numa doutrina ainda irreal, ou melhor, surreal, de paz propriamente dita.

Hoje, 11 de abril, completa um ano da morte do jovem Gilberto Alexandre Santana. Ele morreu aos 29 anos de idade vítima da violência de uma arma furiosa, sedenta por sangue. Ela era carregada por um homem ainda desconhecido, mas com raiva, ira e vingança. O rapaz ainda chegou com vida ao hospital no dia 7 de março, mas sua luta não foi capaz de superar a morte, vindo a falecer 34 dias depois. Ele recebeu os disparos em outra rua, mas por ironia do destino, foi ali em que veio a cair. Desmoronou como uma fruta podre do pé, ao lado do portão de uma dona de casa. Com o sangue brotando e os olhos pedindo clemência pela vida, ele recebeu ajuda dos moradores. Mas não adiantou.




Ainda hoje, a dona de casa não consegue esquecer a cena. Assustada, ela não permite mais as brincadeiras dos quatro filhos na rua. “Aqui está longe de ser a Rua da Paz”, diz. O pavor da realidade é tanto que nem mesmo as palavras saíam para descrever a própria rua. Aposentada, outra mulher explicou que a via, neste ano, está mais calma. “Até o ano passado era a rua mais violenta do bairro. Agora está melhor”, disse. Ela não esconde o receio em falar, mas confessa que o local é outro depois das prisões de algumas pessoas. Violência à parte, a aposentada resume a rua em bons trabalhadores, humildes, mas hospitaleiros. Dias desses os moradores se reuniram para arrecadar alimentos a um senhor de idade com trombose. Cada um deu o que podia e, assim, o ajudaram. “A política da boa vizinhança prevalece. Os arruaceiros não são da rua”, garante.

Quando a noite cai, os pavores de uma outra mulher aparecem. Ela mora exatamente entre o local das duas mortes registradas em 2010. Não bastassem os dois homicídios, ela ainda quase foi vítima de bala perdida. “Dois homens entraram no tiro. Quando vi, uma bala passou fazendo barulho perto de mim”, lembrou. Ela também não dorme depois que o filho de 18 anos sai à noite para ver os amigos. No entanto, mesmo assim, diz que a rua está tendo seus dias de “paz”. “Em 2010 a rua era apavorante. Dava medo. Mas agora, a situação está melhor”. De acordo com ela, a vida vem voltando ao normal depois da morte e das prisões de alguns indivíduos. Mas só isso não basta. Brigas motivadas pelo álcool são freqüentes. Os gritos também assustam. Somente cães vadios, sem donos, continuam a se esfregar uns aos outros durante a noite.

No dia 30 de novembro de 2010, o adolescente Marcelo da Conceição, de apenas 17 anos de idade, foi executado com três tiros em plena luz do dia, também na Rua da Paz. O crime chocou os moradores que ainda se perguntam porque. Além dele, outros cinco homens também foram cruelmente executados na mesma rua. Os crimes aconteceram antes de 2010. Somados, os sete homicídios contrastam a tranqüilidade da via, durante o dia, e o medo dos moradores à noite. Definitivamente, a vida mudou na Rua da Paz.

Diarista três vezes por semana, outra mulher disse que não permite a brincadeira dos dois filhos, de 4 e 12 anos, na rua. Ela disse que até hoje estão assustados com os fatos do passado. Atualmente, a rua continua sendo palco de perigo. Motoristas insistem em beber nos bares ali próximos e sair com seus carros e motos em disparada. Perigo ao volante. Embriaguês constante. Vítimas da imprudência não tão distantes. Além disso, continuam as brigas, algazarras e discussões. “Todos os dias penso em me mudar. Quando não estou em casa me preocupo demais com meus filhos”, diz. Mesmo o menino de 12 anos já sabe o que se passa na rua. As crianças conversam entre si. E se não se falam, vêem as coisas na internet. A infância também foi globalizada.




Trabalhadora, uma mulher disse que um dos filhos pequenos viu a cena, quando uma das vítimas caiu baleada na rua. O ferido chegou a pedir ajuda ao menino. Depois disso, a criança passou por um estado de pânico, chegando a ficar 15 dias na casa de um parente. “Ele não queria voltar para casa, uma vez que o homem caiu aqui em frente e até conversou com ele”, disse a mãe. Ela garante que todos os residentes ali, têm medo. Quem disser que não, está mentindo.

O drama dos moradores da Rua da Paz ainda persiste. Embora alguns digam que o local está mais tranqüilo, é possível identificar medo em seus olhos. Talvez porque os elementos presos, narrados por eles, voltem ao local em breve. Talvez porque tenham o frustrante pressentimento de que outro cadáver esteja a caminho. Ou talvez, pelo simples fato da esperança no verdadeiro sentimento da paz, não mais existir.

Quatro policiais e um destino



Dilmércio Daleffe
A segurança pública de Mariluz – 85 Km de Campo Mourão – definitivamente não vai nada bem. Embora as estatísticas confirmem se tratar de uma pacata cidade, lá é mais comum encontrar vereadores a policiais. Ao todo são apenas quatro policiais militares para um município com 10,2 mil habitantes. A Câmara conta com nove nobres edis. Trata-se de uma realidade absurda, uma vez que, para cada 2,5 mil habitantes existe apenas um policial nas ruas. A Organização das Nações Unidas (ONU) defende a equação de um profissional para cada grupo de 250 pessoas.

A decadência da segurança pública do pequeno município é explícita logo ao chegar a delegacia. Lá, quem recepcionou a equipe da TRIBUNA foi um dos 19 detentos. Não havia naquele momento absolutamente nenhum policial. A cidade é tão carente em segurança que, muitas das informações foram repassadas pelo próprio prefeito. Os atuais PMs são novos na cidade. Os antigos estão presos em Curitiba.

Eram pouco mais de 15h quando os presos tomavam sol no pátio da delegacia. Eles estavam acompanhados de familiares. Era dia de visita. Nos três cômodos que integram a recepção do prédio, ninguém. Nenhuma viva alma. Tivemos que bater na última porta fechada. Quem a abriu foi um dos presos. “O pessoal saiu, mas daqui a pouco eles voltam”, informou. Questionado se não poderia fugir, ele respondeu que não. “Aqui ninguém foge não senhor”. E não saem porque não querem mesmo. Nos fundos, onde tomam sol, o muro é baixo, conseguindo inclusive se apoiar sobre o portão. Aliás, o mesmo portão não é fechado, pelo menos a tarde. Um dos detentos chegou a abri-lo, saiu na calçada para dar informações a nossa equipe. Depois, voltou e o fechou.

A Polícia Civil, que deveria estar presente no prédio e, consequentemente, cuidar dos presos, lá não existe. O carcereiro não mora na cidade e aparece somente para o banho de sol dos detentos. A unidade está submetida à delegacia de Cruzeiro do Oeste. O único escrivão faz parte dos quadros da prefeitura e até a alimentação dos PMs é fornecida pelo município. “Aqui nós fazemos o boletim de ocorrência, investigamos, prendemos, encaminhamos e, quando da ainda cuidamos dos presos”, afirma o PM Gouveia. “Aqui tem mais vereadores do que policiais. E não é papel nosso zelar dos detentos”, lembrou.

Recém nomeado, o delegado de Cruzeiro do Oeste, Gustavo Tucci, disse que, legalmente, ainda não responde pela delegacia de Mariluz. “Não saiu a portaria me responsabilizando por aquela unidade, ainda”, afirmou. No entanto, ele sabe que a situação por lá anda caótica. “É um absurdo, um descaso”, diz. Segundo ele, logo que a portaria for assinada, ele deverá enviar pessoal da civil. Caso contrário, poderá haver transferência de todos os detentos e, conseqüentemente, parar o atendimento definitivo na cidade. Em resumo, hoje, a delegacia de Mariluz, oficialmente, não existe. Até parece um prédio fantasma assombrado pela ausência da Polícia Civil.

Uma cidade abençoada




A tranqüilidade de Mariluz pode ter o dedo do jovem prefeito Paulo Alves. Aos 40 anos de idade, ele despacha em uma sala da prefeitura cercado por imagens de santos. Na parede, Nossa Senhora Aparecida, na mesa, Santo Antônio. Católico fervoroso, ele pode estar fazendo a paz reinar na cidade. No cargo desde 2009, ele diz que já perdeu as contas de quantas vezes solicitou ajuda do estado para aumentar os muros e colocar cerca elétrica na delegacia. Mesmo assim, há pelo menos cinco anos não existem fugas no prédio.

Ele mesmo confirma ter nas mãos uma cidade pacífica, onde a população se dá ao luxo de jogar um inocente baralhinho no calçadão. O último assassinato ocorreu há um ano e meio e, de lá para cá, o trabalho da polícia tem se voltado praticamente a repreensão ao tráfico de drogas. Com um grande crucifixo no peito, Paulo também é ministro da igreja católica local e divide seu tempo entre a prefeitura e a ida quatro vezes por semana às missas. De volta a sua cadeira, Paulo diz que a cidade ficaria melhor com pelo menos oito policiais. “Mas a situação vai melhorar. O atual governador é nosso parceiro e vai nos ajudar”, disse. Para que isso ocorra, ele vem trabalhando e solicitando as melhorias. Afinal de contas, juventude para trabalhar é o que mais possui. “Também não sou casado. Por isso sobra mais tempo para me dedicar ao município e a igreja”, brinca ele.

A realidade em Mariluz

4 policiais existem em Mariluz

10,2 mil é a população local

1 policial para cada 250 pessoas é a equação da ONU

2009 foi o último ano em que ocorreram assassinatos na cidade

19 detentos possui a delegacia local

Os invisíveis




Dilmércio Daleffe

Era uma tarde chuvosa quando o asfalto ainda molhado reluzia o reflexo solitário de Manoel Rodrigo de Souza. Caminhando sozinho no acostamento da rodovia entre Campo Mourão e Maringá, ele carregava um saco sujo com algumas latas amassadas de refrigerante. Sem pressa e sem saber onde estava indo, decidiu sentar e contar um pouco de sua história. Falar sobre a vida de um andarilho de estrada, do sofrimento e das humilhações. Sem documentos, com nenhuma informação e vivendo à margem da sociedade, ele é um invisível. Um ser humano que praticamente não existe aos olhos das outras pessoas. Aquelas as quais trabalham, pagam seus impostos, consomem, mas que preferem ignorá-los.

Manoel não tem documentos e perdeu o contato com a família há pelo menos 30 anos, desde que iniciou a jornada da estrada. Sujo, com as roupas molhadas, não resta outra coisa a fazer senão beber. E é assim que ele faz quase todos os dias de sua vida. Aos 59 anos de idade, ele mantém apenas a roupa do corpo, não carrega mais nada além das latinhas. Aliás, são elas que o ajudam a comprar a “pinga-santa” de todos os dias. Não fossem os pontos de parada dos motoristas nas estradas, Manoel nem comeria. “Nunca passei fome. Sempre ganhei um prato de comida”, disse.

Para dormir, quem o acolhe são os abrigos de ônibus. A noite estava chegando, mas a preocupação dele não era onde dormir e sim, o que tomar. “Da um dinheiro aí pra pinga doutor”, pede ao repórter. Ainda sob o efeito do álcool, Manoel pouco se lembra do passado. Disse que nasceu em Cianorte, mas que deixou a família em Londrina. Hoje, nem ele sabe para onde está indo. É um sobrevivente das sarjetas das grandes cidades que preferiu ganhar o mundo a pé. Em sua concepção, é um homem livre. Livre do consumismo, dos deveres como cidadão, da rotina de todo trabalhador.

A vaidade no asfalto



Aos 47 anos de idade, Lucilda Maria estava sentada sobre duas bolsas perto da rodoviária de Campo Mourão. Ela descansava para encarar outro trecho a pé, agora com direção a Maringá. Disse que há 15 dias deixou Curitiba. Apenas uma carona de carro. O restante foi andando pelas estradas, num percurso de quase 500 quilômetros. Também invisível, ela mantém um mínimo de vaidade. As unhas estavam pintadas, do seu jeito, de branco. “Ganhei o esmalte. Gosto de ficar arrumada”, disse.

Lucilda caminha pelo Brasil há 16 anos. Já perdeu as contas de quantos chinelos gastou pelas estradas. Hoje ela usa um de cada modelo. Afirma que a jornada em que se encontra não foi escolha sua, mas imposição do destino. Segundo ela, brigou com a irmã, apanhou do companheiro, tendo que deixar os filhos para não morrer. “Essa vida tem muito sofrimento”, disse. Para tomar banho, usa os rios. Para comer, pede. Para dormir, utiliza os abrigos de ônibus da estrada. Nas duas bolsas que carrega, traz um cobertor e roupas batidas pelo tempo. Também leva sal, arroz e uma panelinha velha. Quando o prato de comida não vem, ela se vira com o que tem. Lucilda não possui quase nenhuma informação. Não sabia nem mesmo que Dilma era a nossa presidente. Pior, não sabia nem quem era essa tal de Dilma. No entanto, como ela explicou, mesmo que soubesse, isso não vai mudar sua vida em nada.

Medo de gente



Ele não disse o seu nome e quase não conversou. Parecia ter medo do bloco de notas e da câmera fotográfica. Arisco, disse que anda pelo Paraná há muitos anos, não tem família e dorme ao relento. Não fosse a falta de dentes, os chinelos furados e as mãos e pés calejados, se assemelharia a um galã de cinema italiano. Isso porque mantinha os cabelos compridos e grisalhos, bem penteados, e uma barba completamente branca por fazer. O rosto tinha traços de um homem bonito.

Carregava um saco com poucos pertences. Na mão surrada, um pedaço de pau, semelhante a um cajado. Em resumo, ele parecia um profeta. Foi encontrado na rodovia próximo a praça de pedágio de Floresta. De poucas palavras, disse que não ganharia nada permanecendo à entrevista. Deixou o repórter falando sozinho e se mandou estrada a fora. Certeza, tinha aflição às pessoas.



Psicologia para entender

São vários os fatores que levam um indivíduo a se tornar andarilho. Problemas econômicos como desemprego e perda de posses, ocasionam conseqüências como a vergonha, desespero e humilhações. Segundo explica a psicóloga Alice Maria Fernandes de Moraes, em casos como este, a pessoa pode ter atitudes drásticas, como sair sem rumo pelo mundo, fugindo da realidade. Violência, abusos sexuais ou até, traição no casamento também podem desencadear a frustração de um indivíduo. Fora isso, outro importante fator está atrelado ao alcoolismo e a distúrbios mentais. “Geralmente são estes fatores os maiores responsáveis a levar pessoas às estradas”, diz. A psicóloga também explica que ainda existem aqueles que estão nesta vida simplesmente pelo fato de gostarem de aventuras, deixando a responsabilidade para trás. “Muitos preferem um prato de comida na hora da fome do que trabalhar para garantir sua sobrevivência”, afirma.

Coincidências de um provável crime



Dilmércio Daleffe
Josmar Serápio Ferreira, um jovem de 40 anos de idade, residente em Pinhão, no Paraná, vem travando uma batalha pessoal desde 2007, quando teve seu caminhão Mercedes Benz, placas GXA-8341, roubado na estrada entre Campo Mourão e Pitanga. É uma história longa e surpreendente. Na verdade pode tratar-se de um rol fantástico de coincidências ou simplesmente de uma trama bem montada envolvendo uma quadrilha especializada em roubo de cargas e caminhões. As ações podem ter a colaboração de membros corruptos da polícia e até da política. Uma combinação perfeita para o crime organizado no país. Mas como tudo que começa um dia acaba, o esquema está próximo de ser elucidado. Nos próximos dias, somente após a realização de uma nova perícia no veículo apreendido, a polícia civil de Guarapuava deve ter a chave para indiciar várias pessoas suspeitas por integrar o suposto grupo.

Desde o sumiço do seu caminhão Josmar não parou por nem um segundo. Ele estranhou as duas versões dadas pelo motorista do veículo, no dia do roubo. Para o escrivão de polícia de Pitanga, o condutor disse que homens dentro de um Gol prata deram voz de assalto com o carro ainda em movimento, obrigando-o a parar. Para ele, o motorista disse que os homens, numa cena de filme americano, encostaram o Gol atrás do caminhão – também com o carro em movimento -, andaram sobre o capu até alcançar a traseira do Mercedes. As diferenças nas versões levantaram suspeitas. Paulo, o condutor no dia do crime, é um dos suspeitos da trama. No boletim de ocorrências (BO), ele informou que foi amarrado a uma árvore, ficando preso até o dia seguinte, quando o mesmo Gol voltou para apanhar um dos bandidos. Como ele sabia que se tratava do mesmo carro, uma vez que ficou isolado no mato, ninguém sabe.

Desconfiado, Josmar decidiu investigar por conta própria. Tudo o que levantava, repassava à polícia de Guarapuava. Grande parte das informações conseguidas por ele está colaborando para o êxito da equipe do compenetrado delegado adjunto Alysson Henrique de Souza, de Guarapuava. Um cara bravo, mas pelo que se vê, competente. Esta semana, ele conversou com a equipe da TRIBUNA e, num tom de cautela, disse que somente após uma nova perícia no caminhão é que os fatos devem ser comprovados definitivamente.

A luta de Josmar é intensa porque já, há três anos, o caminhão que diz ser dono, está no pátio da 14ª Sub Divisão Policial de Guarapuava, parado, deteriorando. Ele não é rico, mantinha o caminhão para ganhar dinheiro transportando farelo de soja entre Campo Mourão e Guarapuava. Era o único utilitário que tinha. Conseguiu comprá-lo num leilão. Depois disso passou quase dois anos reformando-o. Ele acredita que sua busca terminou. Mas na verdade, a burocracia institucional do país não é bem assim. Vamos explicar. O veículo, diante todos os fatos levantados até o momento, pode ser o dele. Mas acontece que o cavalo está com outra placa, outra numeração de chassi. Ou seja, apesar de muitos detalhes físicos da cabine pertencer ao seu caminhão, um outro utilitário roubado pode ter sido “esquentado” sobre a estrutura. É meio difícil de entender, afinal, o crime organizado dificulta as coisas até para a compreensão dos honestos. A placa do verdadeiro caminhão de Josmar é GXA-8341. Agora, o veículo leva as placas MAO-1233, de Moreira Sales (PR).

As placas atuais indicam ser um caminhão que pertencia à empresa Coral Comércio de Metais Ltda, de Lages (SC). O veículo foi roubado em Macatuba (SP) no ano de 2000. Como nunca mais foi visto, a seguradora acabou pagando o prejuízo ao dono. A grande surpresa ocorreu em 2006, em Foz do Iguaçu. Lá, no dia 28 de julho daquele ano, um documento assinado pela própria polícia (o documento pode ter sido falsificado), informa que o utilitário – Mercedes Benz/ LS, ano 99, branco -, foi encontrado no Paraguai e, consequentemente, recuperado. Neste mesmo dia um homem apresentado como Carlos Alfredo Lago se identificou como o dono e, supostamente, retirou o caminhão. Dias depois, o veículo apareceu no Sistema Infoseg como regular. Não era mais roubado. Em investigação da própria polícia, o tal Carlos não foi encontrado. Na verdade, acredita-se que o caminhão jamais foi encontrado. O documento pode ter sido confeccionado apenas para limpar as placas do Infoseg – um banco de dados criminais da segurança pública nacional com acesso exclusivo à própria Polícia Civil e também da justiça.




À procura do caminhão roubado

Em sua perseverança, Josmar recebeu a informação de um amigo que o seu caminhão foi visto em Paranaguá, mas já com a placa MAO-1233, em 2007. “Esse meu amigo conhecia o veículo e chegou a conversar com o motorista. Foi aí que descobri que já pertencia a um tal de Daniel Pacor, de Moreira Sales”, disse. Pacor já foi vice-prefeito do município e hoje, nada mais é que o presidente da Câmara Legislativa da cidade. Josmar novamente informou a polícia de Guarapuava sobre o seu paradeiro. Ao saber dos fatos, Pacor então pediu uma perícia no caminhão. Os peritos realizaram a vistoria, mas garantiram que o caminhão estava em situação regular. Dias depois, o caminhão foi apreendido pela Polícia Rodoviária Estadual. O mesmo Paulo, que coincidentemente dirigia o veículo no dia do roubo, encontrou o utilitário perto de Guarapuava e chamou a polícia. Desde o dia da sua retenção, está parado no pátio da 14ª SDP.

Os advogados de Josmar então solicitaram outra perícia, em 2009, a fim de encontrar detalhes que só o seu proprietário sabia. Desta vez, a vistoria encontrou inúmeras semelhanças descritas. Agora, três anos depois, o delegado de Guarapuava aguarda a realização de uma nova perícia para dizer se o caminhão é mesmo o de Josmar. Ele explicou que foram detectadas “omissões” na primeira perícia. “Para entregar o veículo ao dono temos que ter todas as certezas. Por isso a necessidade de novos peritos”, disse. De acordo com ele, uma vez constatado, o caminhão será entregue imediatamente a Josmar.

Mas o problema não termina aqui. Daniel Pacor alega que, quando comprou o caminhão, não sabia que ele estava com estes problemas, muito menos com suspeitas de que pode ser produto de roubo. “Paguei R$ 130 mil e não posso perdê-lo”, disse. Pacor explicou que também está solicitando a posse do veículo, uma vez que o comprou de um homem de Santa Maria, na região de Cascavel.

Enquanto nada se resolve, Josmar aguarda a última e definitiva perícia. Em breve, os fatos serão esclarecidos e, os culpados, indiciados. O problema é que este é somente um dos tantos casos que acontecem diariamente no país. Durante o tempo da leitura desta matéria, mais um caminhão foi roubado. Um outro “Josmar” também está sendo passado para trás.



Coincidências suspeitas

Em 2009, Marcos Sidnei Ferro, 41 anos de idade, foi preso pela polícia de Maringá em posse de um Gol furtado em Londrina. No interior do veículo foram encontradas oito chaves michas, além de outras ferramentas utilizadas para roubar automóveis. Ele estava sendo procurado pelos policiais dois meses antes, quando câmeras instaladas na parte externa do Hospital Santa Rita e no pátio do Centro Universitário de Maringá o flagraram furtando dois Gols e um Santana. Cada ação não durou mais que um minuto.

Preso, ele abriu o jogo e acabou delatando um dos comparsas que também aparecia nas filmagens: Alízio Gilberto Serafim de Souza, 46 anos. Ele também foi preso dias antes, com um carro roubado. Atualmente, ele continua detido em Maringá. Mas qual relação isso tem com o caso de Josmar? Alízio tem seu nome no registro de aquisição do mesmo caminhão comprado por Daniel Pacor, segundo cópia do Departamento de Trânsito do Paraná – Detran.

Dados indicam que o caminhão Mercedes Benz placas MAO-1233 – o mesmo roubado em 2000 – foi de Alízio antes de ser repassado a Pacor, sendo transferido ao estado do Mato Grosso em 11 de abril de 2007. O histórico indica que Pacor adquiriu o caminhão no mesmo ano, sendo transferido ao Paraná na data de 24 de agosto de 2007. O que estranha ainda mais é que consta outra aquisição de Pacor ao mesmo veículo, só que agora, em dezembro de 2007. Ou seja, ele comprou o caminhão duas vezes, em agosto e depois em dezembro.

No mesmo histórico, antes de pertencer a Alízio, o caminhão estava em nome de Tarsis Pinheiro Fernandes, cujo emplacamento teria ocorrido em São Bernardo do Campo, São Paulo. Curioso é que Tarsis sempre morou em Moreira Sales, coincidentemente, mesma cidade de Pacor. Então a pergunta? Porque o caminhão aparece em seu nome emplacado no estado de São Paulo?

Para descobrir isso, a equipe da TRIBUNA encontrou o endereço de Tarsis e foi até lá. Numa casinha simples, na comunidade de Barra Bonita, zona rural de Moreira Sales, mais precisamente, no Sítio São Francisco, Tarsis vive com a esposa. Sem luxo nem regalias, os dois são trabalhadores, ele numa indústria de feijão, ela no comércio. Certamente a renda dos dois, juntos, inviabilizaria a compra de um caminhão, ainda mais no valor de R$130 mil, descrito pelo próprio Pacor. A reportagem conversou com a esposa. Ela informou não saber sobre o caminhão. Mas garantiu que o companheiro trabalha há nove anos na mesma empresa da cidade, descartando a possibilidade dele ter morado em São Paulo – onde o caminhão foi emplacado em seu nome. A TRIBUNA aguardou Tarsis por quatro horas, mas ele não apareceu para falar sobre o caso.

Outra coincidência é o fato de Carlos Alfredo Lago, o mesmo indivíduo que diz ter retirado o caminhão roubado em Foz do Iguaçu, estar respondendo processo – nº 013865-0/ 2003, em Ponte Serrada, Santa Catarina – por falsificação de documentos. Na época, em 2000, ele teria falsificado uma certidão de nascimento para obter uma nova carteira de identidade, alegando que seus documentos haviam sido extraviados.

Outra coincidência foi a prisão do policial Ademir Muniz da Silva. Ele foi preso na Operação Trinca Ferro, realizada pelo Gaeco no início deste ano, por desvio de cargas e confecção de Boletins de Ocorrência (BO). Residente em Pitanga, foi ele também quem fez o BO do suposto roubo do caminhão de Josmar, ainda em 2007. Coincidências ou não, a polícia irá dizer em breve.

O grito de Cláudia




Dilmércio Daleffe

Cláudia Galvão de Lima é uma simples vendedora de cortinas. Aos 29 anos de idade, trabalha atrás de um balcão numa cena cotidiana, comum a tantas outras pessoas. Sua rotina é exatamente igual a todos os dias, com exceção apenas dos novos clientes e de suas conversas, vez em quando, desnecessárias. Sua vida bem que podia ser assim para sempre, não fosse o grito que decidiu soltar. Com problemas financeiros, primeiro, para cuidar da saúde do marido vítima de câncer e, agora, com uma grave alergia no filho de menos de dois anos, ela foi obrigada a recorrer à justiça. Foi lá, nas mesas do Ministério Público – MP - de Campo Mourão, onde descobriu possuir mais direitos que pensava. Finalmente, seu grito foi ouvido e o medicamente do filho começou a chegar. Desta vez, de graça.

“Claudinha”, como é conhecida devido à altura – mede um metro e meio e olhe lá -, é uma gigante. Há quase quatro anos, teve que lidar com um câncer no intestino do marido, Rodrigo. Ele tinha apenas 26 anos quando descobriu a doença. Bancou o tratamento sem a ajuda da justiça. Mesmo porque recebeu apoio e tratamento gratuito via SUS na ala oncológica da Santa Casa de Campo Mourão. Mas foi nos corredores daquele órgão quando observou que sua força também vinha do alento de pessoas que ela não conhecia. Eram voluntárias que deixavam os afazeres de lado para dar uma palavra de conforto aos doentes. E funcionava. Depois da cura de Rodrigo, ela também começou a prestar a mesma solidariedade. Simples visitas, frases vindas do coração e uma vontade em ajudar que ainda desafia a lei dos homens. Afinal, são poucos os que de graça, nos dias de hoje, se prestam a cuidar de gente. Que toque as trombetas um membro da nobre política que faz isso.

Enquanto fazia e, continua fazendo as visitas, ela descobriu que o filhinho David, de pouco mais de um ano, mantém em seu organismo uma alergia a lactose. Nem mesmo o leite materno o pequeno usufruiu. Diagnosticado o problema, veio o susto. Cláudia teria que comprar um produto chamado Neucate Advance – que substitui o leite – com preço médio de R$590, a lata. As chances de adquirir o medicamente com os próprios recursos foi logo descartada. Afinal, uma única embalagem dá para dois dias e meio, só. Vendo o filho necessitado e os bolsos vazios, ela não pensou duas vezes. Foi até o MP. Lá, depois de informada, recebeu pronta ajuda da equipe da promotora Rosana Araújo de Sá Ribeiro Pereira. Foi aí que descobriu que seus direitos vão além do que os poucos ensinados nos bancos das escolas. Ela finalmente conquistou a cidadania, saiu de cabeça em pé e ganhou a certeza que seu filho não ficaria mais desassistido.

Bonito na teoria, feio na prática. Nem mesmo a ordem do MP é deveras cumprida pela Secretaria de Saúde de Campo Mourão. De acordo com Cláudia, nos últimos 30 dias nenhuma lata foi repassada pelo município. Com isso, sua conta já chega a quase R$5 mil, dinheiro que, certamente, não será ressarcido pelo órgão. “É um direito constitucional que eu tenho. O município não está fazendo o seu papel”, afirma. Ela explica que a prefeitura alega depender de um pregão eletrônico para adquirir o produto. No entanto, nenhuma empresa compareceu, ocasionando a ausência do Neucate. “Poderia não aparecer ninguém no pregão para a venda de cortinas, que é o que eu vendo. Mas se falando de remédios, isso é um descaso. É negligência”, diz.

O drama de Daniel



Como a busca pelos seus direitos vem funcionando, apesar das falhas, Cláudia decidiu expandir seu grito a outros cantos. Nas visitas na oncologia ela conheceu Daniel Pedro Dias, um jovem de 39 anos com câncer no exôfago. Pobre e sem recursos, ele também recorreu ao MP para conseguir um suplemento alimentar conhecido como Nutren. Cada embalagem custa cerca de R$37. Não é muito, mas imagine para alguém que depende de salário mínimo para viver.

Daniel hoje está encostado. Ele continua a lutar contra o mal que o assola. Incansável trabalhador, ficou 18 anos como ensacador. Mas agora foi obrigado a parar. O peso que sempre carregou na vida agora está direcionado apenas ao combate a doença e as preces a Deus. Ele conheceu Cláudia enquanto fazia quimioterapia na ala oncológica da Santa Casa. Sem recursos para a compra do Nutren, foi levado até o MP pela agora inseparável amiga. “Ela foi um anjo. Sem ela estaria enrolado, pois não tinha dinheiro para o medicamento”, disse.

Casado com a dona de casa Rosana e pai de três filhos, entre eles a pequena Daniele, Daniel vem sustentando a família com um salário por mês. É pouco. Mas seria muito menos se tivesse que bancar o medicamento com os próprios recursos. Ajudado pela equipe do MP, ele recebeu o que precisava. Antes disso, no entanto, foi barrado na burocracia da Saúde. “Como estava doente, meu cunhado correu atrás. Mas ele desanimou quando viu a dificuldade para conseguir o remédio”, explica.

A tragédia de Rosely




A funcionária pública Rosely da Cruz Conrado está de luto. Aos 56 anos de idade, ela acaba de sepultar o marido, Carlos, um trabalhador aposentado da previdência social. Ele morreu a poucos dias vítima de câncer na laringe. A doença foi diagnosticada ainda em 2010, mas somente em janeiro deste ano é que a família passou a comprar o medicamento chamado Nutren. Acontece que o produto começou a pesar no bolso. No mesmo caminho de Cláudia, seguiu Rosely. O MP então ordenou que a Saúde fornecesse 15 latas do suplemento por mês. Durante fevereiro, março e abril, das 45 latas que o município teve que fornecer, deu apenas sete. E ficou nisso. Carlos não precisará de nada mais. Ele morreu no primeiro dia de maio. “Ele não morreu pela falta do Nutren. Mesmo porque minha família colaborou para que o medicamente jamais faltasse”, esclarece Rosely.

Durante a sua peregrinação em busca do produto, a funcionária pública disse que encontrou muitos obstáculos, burocracia, má vontade e humilhações. Chegou a ouvir de uma atendente da Saúde que outras pessoas precisavam do remédio, mais que ela. “Talvez ela tenha visto a chave do carro em minha mão. Mas isso não quer dizer que seja rica. Moro no Cohapar e trabalho até hoje porque preciso”, disse. O aprendizado também fez com que ela passasse a dar forças aos doentes da oncologia da Santa Casa, além de informar sobre os direitos a quem não tem condições de comprar remédios. “Penso em quem não é esclarecido. Muita gente deve morrer pela falta de remédios sem saber que pode recebê-los gratuitamente”, afirma.

A pequena Isabele



Isabele Caroline tem pouco mais de um aninho de vida e nem imagina o que seus pais já fizeram por ela. Vítima de uma alergia a proteína do leite, também teve que passar a tomar o Neucate, aquele mesmo produto do início da matéria, com custo de quase R$600 a lata. Diagnosticada, a mãe estava tranqüila, uma vez que, ainda no hospital, o medicamento era dado de graça. Ao ter alta, veio o susto. “Pensava que era barato, mas me enganei. Quando vi o preço comecei a chorar. Sabia que a saúde da minha filha dependia daquela latinha”, disse a mãe, Daniele Maia.

Com medo de não conseguir comprar o produto, colocou o carro à venda. Mas logo correu à Secretaria de Saúde. Lá, segundo ela, foi desestimulada a pedir pelo Neucate. “Eles disseram que não seria fácil receber, uma vez que era muito caro”, disse. Foi aí que teve a idéia de procurar o MP. Lá, após 20 dias, teve a melhor resposta de sua vida: o medicamento seria fornecido. “Agora está tudo bem. Mas quando vi a dificuldade de não ter o produto, tive a sensação de impotência, de desespero. Chorei muito”, afirma. De acordo com ela e com o marido, Alessandro, as pessoas têm que procurar seus direitos, principalmente, depois de se submeter aos altos impostos do Brasil. “Nós temos um pequeno negócio e sabemos das dificuldades em pagar impostos. Então é justo também que tenhamos acesso a Saúde”, disse.

A médica pediatra, com atuação em gastroenterologia, Patrícia Agulhon disse que não entende porque municípios como Campo Mourão têm dificuldades em doar medicamentos como o Nutren e o Neucate. Segundo ela, existem verbas federais destinadas à compra dos produtos. “Qualquer cidade do interior de São Paulo oferece os mesmos remédios em simples postos de saúde”, afirma. A mesma situação ocorre em Curitiba. Ela explica que a capital também mantém os produtos em postos de saúde, bastando apenas uma receita médica para retirá-los.


A voz do Ministério Público

“Qualquer pessoa tem o direito constitucional a remédios e tratamentos via Sistema Único de Saúde”, afirma a promotora Rosana Araújo de Sá Ribeiro Pereira. Segundo ela, quando o indivíduo tem recusas através da Saúde de sua cidade, ou até do governo, o passo a seguir é procurar o Ministério Público – MP. Somente em Campo Mourão, uma média de cinco pessoas ao dia são atendidas no órgão, todas em busca de direitos que lhes foram negados nos balcões públicos.

Ao chegar no MP, o cidadão preenche um formulário com dados pessoais e relativos aos seus problemas. A promotora informa que é necessário levar a prescrição médica. Em seguida, o órgão fará um levantamento junto a Saúde. Se for mesmo necessário, a prefeitura ou, o estado, terá que cadastrar o doente, passando automaticamente, a fornecer o tratamento ou o medicamento solicitado. Quando o paciente não é atendido, o MP entra com um mandado de segurança, obrigando o seu cumprimento. Em Campo Mourão são inúmeros os casos já cadastrados através de solicitações via MP.

Município não consegue suprir demanda

Diante de inúmeras reclamações de pacientes que não conseguem acesso ao suplemento alimentar, o diretor geral da Secretaria de Saúde de Campo Mourão, Marcio Alencar, informou que a demanda é muito grande e o município acaba não conseguindo suprir a demanda. Ele comenta que a secretaria iniciou a entrega destes produtos num valor pequeno, mas tem aumentado bastante. Segundo o diretor, o município fez recentemente uma licitação de aproximadamente R$ 150 mil para a compra do produto, mas não apareceu nenhum vendedor.

Alencar contradiz a médica pediatra, Patrícia Agulhon. Conforme ele, como o produto não é considerado medicamento, não existem verbas federais para a compra. “Hoje as pessoas procuram o Ministério Público. A Justiça tem liminar para entregar porque a família não pode comprar, mas não é bem esse o critério que a Justiça tem utilizado. E para nós oferecermos tem que ter um jeito de comprar”, explica.

De acordo com Alencar, já houve entreveros com pacientes que precisavam do suplemento. Ele ressalta que a secretaria de Saúde fez licitação, mas não apareceu nenhum interessado em vender o produto. “As pessoas poderiam requisitar junto ao Governo Federal, mas buscam em quem está mais próximo, no caso, a secretaria de Saúde”, critica.

Conforme Alencar, os produtos são receitados por nutricionistas. Segundo ele, quando a receita chega à secretaria, os casos são repassados para avaliação de um profissional do município para confirmar a real necessidade de uso. “Existem alguns que são complementos que podem usar algum alimento diferenciado, mas tem que ser acompanhado por um nutricionista. Isso depende, pois existem casos de algumas pessoas que tem alergia.”

Alencar comenta que a secretaria de Saúde tem recebido vários pedidos do Ministério Público para atender pacientes que precisam do suplemento, porém a demanda é muito grande. Ele explica que além de pacientes do SUS, particulares também querem o complemento. Sobre o fato de o paciente ter de recorrer ao MP toda vez que precisar do suplemento, ele explica que na verdade é devido a dificuldade do município em oferecer o produto. “Não tem onde comprar”, justifica.

Em relação a supostos pacientes mal atendidos, o diretor pede às pessoas que denunciem. Segundo ele, toda denúncia de mau trato será apurada e o responsável penalizado. “Não podemos deixar que a população seja mal atendida aqui”, completa.

O drama de Pedro

Dilmércio Daleffe

Hoje, aos 46 anos de idade, Pedro Ferreira dos Santos só está vivo devido a insistência de um médico, Osvaldinei de Sá, que ameaçou chamar a polícia para levá-lo ao hospital. De enfermeiras, que forneceram atenção e carinho e, até da prefeitura de Boa Esperança, que o retirou de um casebre podre para transferí-lo à uma boa casa na cidade. O drama vivido por Pedro não foi espelhado em nenhum filme, muito menos em novelas com dramalhões mexicanos. Ele é real e está bem ao lado, na pequena Boa Esperança, nome sugestivo para quem acaba de renascer. “Se eu continuasse naquela casa teria morrido”, diz ele. Na casa de madeira caindo aos pedaços, construída ainda na década de 60, a família se espremia entre quinquilharias amontoadas nos cantos, armários e camas. Eram sacolas de roupas doadas pela comunidade que jamais foram abertas pela família. Tantas eram que acabaram por abrigar os roedores.

Muitas delas ficavam sobre a larga cama de Pedro, que não se levantava. Permanecia inerte, dependendo apenas da atenção da mãe(Tereza), da irmã(Margarida), do pai(Antônio) e do primo (José). As duas primeiras morreram. Num descuido dos outros dois, ele quase perdeu os pés. Com as pernas dormentes devido a uma doença degenerativa, os bichos passaram a se alimentar das feridas abertas por eles próprios. Pedro nada sentia. Para piorar a situação, o escuro da casa facilitou com que Antônio e José passassem despercebidos. Foi o suficiente para o início da sua tragédia pessoal.

Acompanhamento

Na verdade, a equipe de saúde da cidade sempre assistiu a família. No entanto, como o acesso até a propriedade era difícil, principalmente com a chuva, as enfermeiras ficaram quase duas semanas sem fazer as visitas em virtude do barro. Foi o suficiente para se depararem com uma cena desumana, irreal. Lá, puderam observar que os pés de Pedro foram praticamente mutilados pelos roedores, ocasionando uma série de infecções. “Achamos que o quadro poderia até ser irreversível”, observou o médico. Mesmo necessitando de amparo médico, Pedro relutou para sair da casa. Osvaldinei teve, inclusive, que ameaçar chamar a polícia para levá-lo ao hospital.

Mas valeu a pena. Duas semanas na cama do hospital fizeram com que seus pés fossem recuperados. De acordo com o médico, a recuperação foi rápida, mas o paciente continuou internado como medida de prevenção, uma vez que não podia mais voltar para aquele ambiente, podendo ser até considerado como “hostil”. Num depoimento emocionado, Osvaldinei relatou que chegou a chorar quando viu as condições de Pedro.

Situação

A família morava numa quarta de terra, num sítio distante a 12 quilômetros do centro de Boa Esperança, numa comunidade conhecida como Água do Pavão. Lá, os filhos cresceram, alguns foram embora, outros como Pedro adoecerem e, outra morreu, como foi o caso de Margarida, morta aos 54 anos em maio de 2010. “A casa estava sem condições para abrigar um ser humano”, disse Rogério Matias, chefe de gabinete da prefeitura de Boa Esperança. Segundo ele, até que tentaram reformá-la. No entanto, a intensidade de entulhos dentro dela era tamanha que o melhor a fazer foi levá-los para a cidade. Até sapos ficavam em seu interior, sem nunca atrapalhar ninguém, comentou uma das enfermeiras.

Antônio, o pai, lamenta sobre a situação do filho, a quem diz ter muita pena. “Somos todos analfabetos aqui”, disse. A família sempre dependeu da agricultura para sobreviver, trabalhando muito, desde cedo. Por isso não se preocuparam em estudar. Aos oito anos, Pedro já capinava na roça ao lado do pai e dos outros irmãos. Até a sua adolescência, segundo o relato do pai, Pedro era muito trabalhador. Mas uma desgraça se abateu sobre o corpo franzino do rapaz, o levando para a cama definitivamente.

Com a ajuda da prefeitura, o sítio foi trocado por uma casa na cidade. Nada de luxo. Mas um imóvel com condições decentes para uma família. Hoje, Pedro fica em um quarto arejado, bem iluminado, literalmente com os pés para cima e, o melhor, com as visitas mais regulares do pessoal da saúde.

Além disso, oito terços e uma imagem de Santo Antônio decoram a parede do quarto. “Rezo todos os dias para agradecer a saúde que tenho”, diz Pedro. Brincadeiras à parte, ele também diz rezar pelo seu time, o Palmeiras, o qual vem deixando a desejar nos últimos jogos. Sua única diversão é o inseparável rádio. “Adoro ouvir música”.

Companhia

Quem mais cuida de Pedro é José, o primo “Zeca”, com 64 anos. Ele deixou a capital paranaense há mais de 20 anos para morar com seo Antônio. Agora, com a morte das duas únicas mulheres da casa, é ele quem destina atenção especial ao acamado. “Procuro fazer de tudo por ele. É uma pena vê-lo assim”, disse. Até o início de 2010, embora permanecesse sempre na cama, Pedro ainda sentava. Mas a fragilidade de seu corpo, que vem piorando com o passar dos dias, permite a ele ficar apenas deitado. De acordo com o primo, os movimentos das mãos também começam a ficar debilitados. “Agora até comida temos que dar a ele”, lembrou. Já o pai passa a maior parte do tempo fora. É ele quem administra a renda da família, resultante de três aposentadorias.

Mas as lembranças da irmã e da mãe, mortas no último ano, remetem Pedro à tristeza. Segundo ele, Tereza morreu aos 74 anos de velhice. Já, Margarida, a irmã, morreu de tristeza. Não suportando a ausência da mãe, ela teria se entregado a depressão. Perdeu muitos quilos, começou a tossir intensamente e acabou morrendo na própria casa, nos braços de seo Antônio. O pessoal da saúde confirma a história. De acordo com as enfermeiras, a irmã parou de comer. Diagnosticada, ela não ingeria as vitaminas e jamais aceitou o convite para ir até o hospital. Passava dias sem sair da casa, fechada em seu próprio mundinho no escuro do casebre. Ao se lembrar de Margarida, Pedro se emociona e diz nunca se esquecer da companheira. “Um dia vamos nos encontrar novamente. Rezo para ela”, diz.

Família recebeu ajuda há quatro anos

Há cerca de quatro anos a prefeitura local construiu um quarto e um banheiro em alvenaria para que Pedro tivesse melhores condições de higiene no sítio em que morava. No entanto, segundo relatos de enfermeiras e do próprio órgão público, os dois cômodos jamais foram utilizados. Pior que isso. O local acabou sendo usado para acomodar mais bugigangas e quinquilharias da família. A higiene da casa sempre foi reprovada pelo pessoal da saúde. Hoje, além da casa na cidade ser melhor, uma outra prima de Pedro, Fátima, vem colaborando com a organização do novo lar. Ela faz a janta, lava a louça e ainda trata das roupas da turma. Enquanto o tempo passa, Pedro vai levando a sua vida, mesmo dependendo dos outros. Mas esse é o seu destino, a sua sina.

Matéria publicada no Jornal Tribuna do Interior/ 2010