Ao entardecer, as luzes da praça desenhavam a figura solitária de um homem isolado pelo mundo. Era Laércio. Um homem que precisa de ajuda.
Dilmércio Daleffe
Isolado do mundo, Laércio foi encontrado sozinho, sentado num dos bancos da praça São José, centro de Campo Mourão. Ele passa os dias assim, sem muita conversa. Pensativo, via o vai e vem dos carros e pessoas sem conseguir observar nada. Seu pensamento estava longe. Era final de tarde e a luz amarela dos postes republicanos começava a refletir em seu rosto. Mostrava as “cicatrizes” de um passado sofrido. De uma vida ao avesso. De uma escolha errada, um caminho sem volta. Refletia o vício pelo álcool e, como conseqüência, todas as explicações de seu distanciamento dos outros seres humanos. Laércio precisa de ajuda. Ele está condenado pelo vício. Mas quem vai socorrê-lo?
Aos 58 anos de idade, já perdeu a esperança em dias melhores. Hoje, dorme ao relento. Ontem, amanheceu sob uma marquise na Irmãos Pereira. Amanhã, não sabe onde deitará. Não tem casa, filhos, muito menos mulher. Acorda todos os dias sem rumo. O objetivo é conseguir alguns trocados para a “mardita cachaça”. Afinal, neste país, qualquer moeda dá direito a uma dose de pinga. O vício torna-se barato no bolso, mas caro na consciência. A necessidade em manter-se alcoolizado é maior até que a fome. “Hoje não comi nada. Estou faminto”, disse. Laércio carregava uma pequena lata de sardinhas e um maço de couve flor. Isso era tudo, pra quem não tinha nada.
Com uma boa prosa e a constante ironia pela vida, Laércio é um cara extremamente interessante. É boa gente, gozador. Diz coisas inteligentes com sarcasmo de intelectuais marxistas. Não ta nem aí pra nada. Ele definitivamente perdeu o medo de tudo. “A minha faculdade foi a vida. Na terra dos lobos, latir é só o começo”, disse. No entanto, nem os poucos momentos de descontração escondem o seu problema. Ele está doente, com uma grande ferida em um dos pés.Nem ele sabe como tudo começou. Mas a situação não é nada boa. “Se perder o pé, vou virar o Saci Pererê”, ironiza.
Há um mês, Laércio foi encontrado no albergue. Era uma noite gelada, quando o pessoal o encontrou na rua, levando-o até o abrigo. Lá, os monitores o ajudaram a tomar banho e, consequentemente, lavar o ferimento. De acordo com eles, o pé parecia estar em estado de putrefação. O cheiro era ruim, podre. Passados mais de 30 dias, o membro continua enfaixado, embora nem Laércio saiba como está. Segundo ele, dia desses foi até o hospital quando tomou um medicamento. Ontem, no entanto, continuava mancando. Num dos pés vestia uma pantufa cinza, de pelúcia. Noutro apenas uma meia sobre o curativo.Cena patética de um país cujos personagens são reais. O Brasil está cheio de “Laércios” pelas ruas. Uns querem, outros dispensam ajuda. A verdade é que a ferida ainda existe, mas ele não está nem um pouco preocupado. A dúvida é somente sobre a quantidade de moedas a serem conseguidas amanhã. Mais uma pinga a caminho. “Só tomo cachaça. O dinheiro não dá para a cerveja”, diz.
Ao mesmo tempo em que mostra indiferença aos seus problemas, Laércio fala muito em Deus. Exibe no peito um grande crucifixo e conta histórias bíblicas, como a de Pedro, que renegou Jesus três vezes no dia em que os romanos o mataram. Mas o seu lado forte acaba quando reflete sobre a vida. Além de precisar de ajuda, ele diz aceitar a solidariedade dos outros. “Preciso de um cantinho. Tenho que parar de beber, embora não consiga. Gostaria de uma ajuda”, diz. Laércio lembra que começou a se viciar aos 21 anos, após uma depressão por causa de um amor não correspondido. Não parou mais. A vida foi regredindo, até chegar aos dias de hoje: a rua, o banco da praça, a marquise.Ele confessa ter um irmão na cidade, mas diz preferir não solicitar sua compaixão.
Mas a conversa vai chegando ao fim. É que tocaram os sinos da Catedral. Eram 19 horas. Isso representava o horário de Laércio sumir da praça. “O pessoal que recolhe gente na rua já vai aparecer por aqui. Eu não quero ir com eles”, explica. Mais uma vez, enquanto a cidade dormirá confortavelmente, Laércio terá outra noite sob as marquises do centro. Mais uma noite. Mais uma dose. Mais uma vida em risco.Quem ajudará Laércio?
Que texto magnifíco meu amigo. Abraços, Gruber.
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