Ele podia ser quem quisesse na vida. Tinha família, dinheiro, terras. Entre anjos e demônios, preferiu o inferno. Escolheu o caminho errado e morreu por isso. Depois de 30 anos usando drogas, chegou ao fundo do poço. Internado em 2009, escreveu um diário onde revelou seus medos, dramas e ressentimentos. Morreu aos 46 anos de idade, sozinho, numa cama longe da família, na cidade de Piedade. Nome sugestivo a quem estava lutando para largar o vício. As drogas o venceram. Sua família deseja agora que o caso sirva de exemplo a jovens que começaram a entrar no mesmo caminho.
Dilmércio Daleffe
Ele tinha pais afetuosos, irmãos companheiros, terras, carros, dinheiro. Mas logo na adolescência, ainda aos 16 anos, foi apresentado à maconha. Não saiu mais. Daí por diante Milton Dubay conheceu os caminhos sinuosos da vida. Foi preso por 12 ocasiões, bateu o carro inúmeras vezes, passou a usar cocaína e já, depois dos 40 anos de idade, se entregou ao crack. No fundo do poço, foi internado pela décima vez, agora na cidade de Piedade, em São Paulo. Foi lá, durante quase 90 dias que escreveu um diário sobre o seu drama, a sua tragédia pessoal. Nos relatos pediu desculpas à família, se ressentiu dos problemas financeiros ocasionados pelo vício e declarou seu amor pela mãe - sua maior companheira. O tratamento não foi concluído. Milton morreu antes do tempo. Sua vida terminou enquanto dormia, numa cama solitária, distante dos irmãos e da terra natal. Sentindo a falta da química tóxica dos entorpecentes, o seu organismo não resistiu. Ele morreu por causa indeterminada, aos 46 anos, definitivamente, vencido pelas drogas.
Dia 27 de fevereiro de 2009, sexta-feira, primeiro dia do diário: “Acordei 6:30 e fui escovar os dentes. Fui tomar café e aí fui na primeira reunião matinal. Depois fui na educação física”.
Milton nasceu em Campo Mourão no dia 09 de abril de 63. Do signo de Áries, não tinha malícia e muito menos ressentimentos. Era um cara boa pinta e sempre despontava com uma boa prosa, seja com os amigos ou entre a família. Namorou todas as moças que desejou na cidade e veio de uma família de bons trabalhadores, honestos. O pai, Eduardo, sempre foi de Campo Mourão. Pobre, fez dinheiro com a cultura do algodão, nas décadas de 60 e 70. A mãe, Júlia foi o seu ponto de apoio. O porto seguro de todas as horas. Ela recebia inúmeras visitas em sua casa, diariamente. Era uma mulher guerreira, querida pela comunidade. Criou quatro filhos: Laércio, Reginaldo, Milton e Eslaine. A saúde acabou por abandonar os pais de Milton. Eduardo morreu aos 77 anos, em 2006. Júlia, foi nova, com apenas 64 anos, em 2004.
Dia 03 de março de 2009, terça-feira: “Hoje não acordei muito bem, pois meus dentes sangraram durante a noite e senti muita dor. Comecei a participar ativamente da educação física. Tenho que melhorar. Estou tendo dificuldade para falar e me expressar durante as reuniões de grupo”
No começo de sua vida, Milton morava na fazenda. De acordo com o seu diário, gostava muito de lá. “Era livre para brincar, domar cavalos. Porém eu era uma criança que não tinha conhecimento das conseqüências dos meus atos”, disse. Ele tocava fogo em folhas e nos pedaços de madeira, que acabava se alastrando pelas lavouras dos vizinhos. “Estes atos me faziam sentir vergonha e, principalmente, medo de apanhar do meu pai”, revelou. Para combater tais sentimentos ele se escondia na mata, chegando até, às vezes, a dormir por lá. Os estudos iniciaram na escola que se localizava dentro da fazenda dos pais. “Me lembro que a professora me tratava muito bem, pois como disse, era o dono da escola. E eu, por ter dinheiro, comprava os coleguinhas com borracha, lápis, caneta e cadernos”, relatou.
Como conseqüência, os alunos de classe copiavam a matéria do quadro para ele. “Hoje, sei que isso me impediu de aprender muitas coisas. Mas sei também que de outra maneira, o dinheiro continua comprando facilidades”. Algum tempo depois a família mudou para a cidade e, ao invés de Milton ser matriculado na quarta série, foi colocado na segunda série. “Este acontecimento me deixou com vergonha, pois eu era a maior criança da sala”, disse. Logo ele abandonou os estudos para sempre.
Dia 07 de março de 2009, sábado: “Hoje acordei meio impaciente, mas o dia passou tão rápido que não deu pra perceber. É que sou dependente químico e preciso de ajuda”.
Já na adolescência, em Campo Mourão, as companhias da cidade não eram mais inocentes, puras como da época em que vivia na lavoura. As amizades tinham interesses, como até hoje acontecem. Foi aí que conheceu a maconha. Ainda aos 16 passou a utilizá-la com freqüência, aumentando o consumo dia-a-dia. Com o tempo os pais e irmãos acabaram descobrindo. Mas já era tarde demais. Milton estava viciado, doente, nas mãos de traficantes. A dependência vitimou a família de todas as formas possíveis. Financeiramente: Os pais gastaram muito dinheiro pagando advogados para tirá-lo da cadeia – sempre foi preso como usuário -, além de ter que, indiretamente, pagar toda a droga consumida por ele. Psicologicamente: As suas detenções, loucuras, danos materiais e a própria doença abalaram todos os membros da casa. Humilhações: De certa forma a sociedade, munida de extremo preconceito, olhava diferente à família. Só pra se ter idéia do que a droga causava na vida de Milton, ainda na década de 80, ele foi apontado como um dos recordistas em acidentes de trânsito no Paraná.
Dia 27 de março de 2009: “Hoje acordei bem aliviado, pois ontem esqueci de tomar os remédios e, esta irresponsabilidade não teve maiores consequências. O coordenador me deu uma nova chance. Hoje estou bem mais tranqüilo e focado na minha recuperação. Estou aberto ao tratamento”.
Os atos de um viciado dificultam a vida de todos a sua volta. No entanto, no caso de Júlia, a sua jornada foi mais dolorosa. Vendo a escolha do filho pelo caminho das drogas, ela e o marido viraram reféns. Por inúmeras vezes era a mãe quem recebia traficantes dentro da própria casa para arcar com os pagamentos dos entorpecentes. Não é exagero dizer que Milton não morreu pelas mãos dos traficantes porque sempre havia dinheiro. “Se ele não tivesse grana, já teria sido assassinado há muito tempo”, revelou Laércio, o irmão. Segundo ele, a mãe aprendeu a lidar com o drama do irmão, vivenciando todos os “pesadelos” daquela realidade. Relatos de uma tia revelam que certa vez, Júlia foi levada de dentro de casa por traficantes. Eles a obrigaram a sair com dinheiro para pagar a dívida do filho. Junto aos bandidos, dentro de um carro, ela efetuou o pagamento. Já fora da cidade, ela foi deixada. Mandaram que voltasse a pé, sem chamar a polícia. Júlia tinha 58 anos de idade.
Numa das primeiras vezes que Milton foi preso, os pais e os irmãos estavam no fórum aguardando a sua chegada com a polícia. Ali, no saguão, os pais derramaram lágrimas ao ver o filho algemado, sendo levado por policiais como um bandido. “Ali naquele momento eu vi que ele arrebentou com nossos pais. Eles não mereciam passar por aquilo”, lembra Laércio. Após tantas detenções por uso de drogas, até mesmo a polícia passou a ter paciência. Comerciantes, pessoas na rua, enfim, todos que o conheciam, sabiam que se tratava de uma pessoa bastante doente. “Quase todo mundo tinha consciência de sua situação. Por isso tinham paciência com ele”, diz.
Dia 30 de março de 2009: “Hoje acordei de bem com a vida e com vontade de participar ao máximo do meu tratamento. Partilhei sobre os meus relacionamentos amorosos e, como conseqüência decorrentes destas, registrei dois filhos sem ter certeza que sou o pai deles”
Convidada para falar sobre o assunto drogas em uma associação civil da cidade, a mãe de Milton foi ameaçada por traficantes. Eles teriam ligado exigindo que ela não fizesse mais palestras como a que fez. “Na verdade, não foi uma palestra. Foi um desabafo sobre o drama do filho. Os traficantes não gostaram nada”, revelou Laércio. A situação era a mesma sempre, simplesmente, porque Milton não conseguia se livrar do vício. Ele tentou por diversas vezes abandonar as drogas – quando era internado em clínicas. Mas a doença era mais forte que ele. Por algumas ocasiões, quando via adolescentes filhos de conhecidos seus usando drogas, Milton denunciava aos pais. “Ele não queria que acontecesse o mesmo com amigos dele. Então quando via jovens usando entorpecentes, ele falava”, disse o irmão. O declínio físico e pessoal começou mesmo após a morte da mãe, em 2004. De acordo com a família, Milton perdeu a pessoa mais próxima a ele. Júlia era quem o ajudava no seu drama, chegando inclusive até a comprar drogas ao filho.
Dia 09 de abril de 2009: “Hoje acordei bem feliz. Pois hoje completei 46 anos de idade. Me fez lembrar que estou sozinho no mundo e isto me deixou mais alerta e com vontade de lutar pelo que é meu. Fiquei feliz e ao mesmo tempo com vergonha do grupo, que cantou parabéns pra mim. Estou com mais vontade de lutar contra esta doença”
Durante o tempo que permaneceu internado, Milton relatou muito sobre a preocupação em voltar a cuidar dos seus bens. Mesmo com a sua “falsa” maturidade, os pais dividiram as terras, sobrando uma boa parte para que ele cuidasse. Eram cerca de 60 alqueires e quem acabou cuidando da propriedade foi a mãe. De acordo com a família, devido ao vício, Milton não conseguia administrar nem sua vida, quem diria uma a fazenda. Mesmo durante o seu tratamento, Milton queria saber como estava a plantação, os lucros, problemas com o maquinário. Foi na clínica também quando escreveu uma espécie de projeto de vida. Na parte da saúde ele descreveu que não gostaria de fazer esportes, muito menos academia. Para dormir, pretendia deitar às 23h e levantar às 7h. Medicamentos não tomaria mais e, assim que saísse, queria fazer uma bateria de exames, principalmente, o da próstata. Nas amizades, preferia se relacionar somente com a família e pessoas ligadas ao trabalho, tudo para evitar pessoas do antigo circulo de amizades, os viciados.
Dia 23 de abril de 2009, último relato antes da morte: “Hoje acordei um pouco doente. Tive começo de gripe forte. Tive que levantar de madrugada para ir no posto tomar remédio e o Cidinho mediu minha pressão. Tive uma noite muito ruim de sono. Consegui dormir um pouco. Levantei, fiz minha higiene pessoal. Fui tomar café. Subi para fumar um cigarro. Aí bateu o sinal. Fui a reunião matinal e na educação física. Na parte da tarde tive reuniões normais e depois fui consultar o doutor Marcos. Retornei a outra reunião sobre sentimentos com a doutora Nelci. Falei dos meus sentimentos.
Milton morreu às 3 horas da madrugada do dia 25 de abril de 2009, na cidade de Piedade. O nome até parece uma coincidência, uma brincadeira do destino. Foi uma morte silenciosa e sem dor. Morreu sozinho enquanto dormia, 72 dias depois de uma abstinência total dos narcóticos. O corpo veio à Campo Mourão, onde foi enterrado na quadra 1083 A, do Cemitério São Judas Tadeu. Agora, ele está novamente junto com os pais, Julia e Eduardo. Deixou dois filhos. Para a família, mesmo sendo uma tragédia, o caso deve ser discutido na sociedade, servindo de exemplo a jovens, ou não, que vem tomando o mesmo rumo. Afinal, casos como o de Milton nunca estão longe. Não estão retratados apenas nas novelas da Globo ou em seriados americanos. Podem estar ao lado ou muitas vezes até dentro de casa. Os pais são os últimos a saber, ou querer acreditar. A trajetória de Dubay também não pode ser comparada a de um bandido, de um marginal. Ela tem que ser refletida como um caso de saúde pública, uma doença que cada dia mais vem invadindo os lares brasileiros.
Durante o seu internamento, Milton escreveu uma carta para a já falecida mãe. Não se sabe ao certo se o texto foi uma iniciativa própria, ou um pedido do professor da clínica de recuperação, como uma espécie de redação. Seja qualquer um dos dois motivos, as palavras saíram direto do coração.
Carta para minha mãe Júlia Mateus Dubay
“Minha mãe, estou te escrevendo esta carta porque estou com muita saudade de você em minha vida. Você sempre me acolheu quando eu mais precisei, mas infelizmente você teve que ir embora. Você sempre foi tudo em minha vida. Hoje gostaria de te falar que as coisas ainda não estão certas como você queria. Mãe, ainda para mim não caiu a ficha do que aconteceu com você. Pois para mim não foi uma morte comum, acho que foi assassinada. Você foi a pessoa que nunca me deixou sozinho nas horas difíceis, sempre esteve ao meu lado, mesmo quando fui preso. Sei que para você não foi fácil me acompanhar até o último dia de sua vida. Você sempre foi uma pessoa muito trabalhadora. Lembro que no Dia das Mães a sua casa ficava cheia, pois você amparou muitas pessoas que hoje estão bem. A sua vida sempre foi ajudar os outros. Tenho certeza que está com Deus.
Mãe, você deixou uma marca no meu coração e de muitas pessoas. Você era uma pessoa muito divertida e passava muita energia. Mãe, hoje estou passando por uma situação muito difícil. Gostaria que estivesse ao meu lado. Dentro de mim você não morreu. As vezes penso que ainda está em casa. Depois que foi embora, infelizmente minha vida regrediu. Mas vou tocar esta vida com garra e determinação. Quero que esteja em um lugar bom com Deus. Mãe, me proteja aqui na terra que estou orando muito por você. Te amo muito minha mãe. De seu filho, Milton.
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