segunda-feira, 30 de abril de 2012

Moisés, o jagunço por acaso

Dilmércio Daleffe

Filho de lavradores, ele sempre buscou uma vida digna. Nasceu em Minas Gerais em 1937, em pleno “Estado Novo” criado por Getúlio Vargas. Época de irresponsabilidades e desordens do próprio governo. Cresceu sob os efeitos de uma constituição considerada fascista. Mas para ele, nada disso importava. Sempre foi da roça e lá, não se discutia política. Falava-se apenas do tempo, da chuva e da terra. Com o passar do tempo, os governos mudaram e o menino cresceu. Mudou-se ao Paraná e aqui contribuiu com a era do café e do algodão. Mas na década de 70, já aos 35 anos de idade, a vida apresentou o caminho do inferno e ele, sem saber, acabou aceitando o convite. Durante poucos meses, transformou-se num verdadeiro jagunço, daqueles que recebem dinheiro dispostos a matar ou morrer.

Por motivos óbvios nosso personagem não quis ser identificado. Aqui, seu nome fictício será Moisés. Hoje, aos 75 anos de idade, Moisés é um senhor. Um idoso gente boa daqueles com uma boa prosa sempre guardada pra contar. Veio de Cabo Verde, interior de Minas Gerais, numa família de oito irmãos. Chegou ao Paraná com os pais ainda aos 17 anos. Aos 30 já estava com a mulher e os filhos no Noroeste do estado, mais especificamente em Moreira Sales. Ali continuou a saga nos campos. Ganhou muito dinheiro com o ciclo do café e do algodão. Chegou a comprar uma propriedade, mas teve que vendê-la mais adiante. Honrou o chapéu que ainda usa e criou honestamente oito filhos.

Moisés é um legítimo brasileiro. Passou por bons e maus momentos, mas nunca abandonou os “seus”. Sentado numa esquina de bar, Moisés tentou evitar a história a seguir. Mas acabou aceitando contá-la por não ter o nome revelado. Segundo ele, tem medo de um passado que ainda o persegue. Diz ele que trabalhava na roça em 1972 quando um sujeito chegou e perguntou se queria ir até o Mato Grosso pra “quebra de milho”. A proposta era boa e o dinheiro, melhor ainda. Aceitou. No dia marcado, seguiu até o trabalho junto a outros dois lavradores, também de Moreira Sales. Após longa viagem, chegaram a uma grande fazenda do Mato Grosso do Sul. Para seu espanto, não viu nada de milho. Nenhum milharal. Soube horas depois que a tal “quebra de milho”, na verdade era outra coisa.

Moisés recebeu das mãos de capangas da fazenda um revólver 38 e uma carabina. A partir daquele momento, deixava de ser um lavrador honesto para ser um jagunço da propriedade. Mas ele jamais quis fazer o serviço. Segundo ele, caiu numa armadilha do destino e, com medo, só pensava em como fugir daquele lugar. “Tinha minha família. Estava com medo de não voltar mais. Nunca quis ser um jagunço”, disse. Nos quase quatro meses em que permaneceu no local, Moisés viu de tudo, inclusive valas com cadáveres.

Ele conta que era uma época em que a disputa pela terra estava muito árdua. Fazendeiros brigavam para defender e aumentar suas propriedades, mesmo que a luta se resumisse à morte. “No tempo em que lá estive a boca era quente demais. Vi muita gente morrer, inclusive os dois companheiros que viajaram comigo”, afirma. Numa ocasião, os dois homens responderam a um dos capangas da fazenda. Não quiseram fazer um serviço. Então foram friamente mortos e enterrados numa vala comum.

A partir daquele momento, Moisés não pensava em outra coisa senão fugir. Esqueceu-se do dinheiro e, numa noite pediu para fazer a guarda da propriedade. Munido da carabina e do 38, fugiu sem deixar amigos. Deixou uma passagem de sua vida. Mas as lembranças e pesadelos daquele tempo, ele jamais conseguiu abandonar. Até hoje reluta com a própria consciência. Moisés fugiu durante cinco dias e cinco noites mato à dentro.

No seu caminho, enquanto olhava para trás, encontrava onças à frente. Tinha que dormir sobre as árvores para não ser engolido por animais e, consequentemente, pelos homens. Dias depois chegou como um trapo humano até um vilarejo. Lá encontrou ajuda e retornou ao Paraná. Nunca mais saiu daqui. Ele conta que a prática que um dia vivenciou ainda existe nos dias de hoje. “A questão da terra nunca vai terminar. Os homens sempre vão matar por ela”, diz.

De acordo com ele, há pouco tempo, recebeu um novo convite para “quebrar milho”, também no Mato Grosso. “É comum. Ainda tem gente que contrata pessoas para o serviço”, afirma. Entre as lembranças e as rugas do tempo, Moisés também buscou a Deus. Vai a igreja com frequência e sempre que pode, agradece pela família que possui. Há algum tempo, teve um derrane. Anda com dificuldades. A muleta é quem o ajuda. Como já descrito anteriormente, ele é um legítimo brasileiro. Teve acesso gratuito ao inferno, mas acabou apresentado a Deus.

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