segunda-feira, 6 de junho de 2011

Os heróis trabalham sujos


Dilmércio Daleffe

Em seus 36 anos de idade, Manoel Joaquim de Oliveira Filho dedicou 15 deles a coleta do lixo em Campo Mourão. Ele trabalha na Seleta – empresa contratada pelo município para dar um final em todo lixo da cidade. Mas antes dela, já vinha atuando como coletor, ou simplesmente, lixeiro. Desde os 21 anos, deixou de lado a agricultura ao lado dos pais, para contribuir na limpeza pública. Também abdicou do sonho em ser bombeiro. Queria combater o fogo, ser um membro atuante da comunidade, ser prestativo. Almejava ser um herói. No entanto, o ideal ficou de lado. Hoje, é o mais experiente no trabalho, servindo inclusive de exemplo aos mais novos. O trabalho é sujo, mas a profissão é limpa, digna. Orgulho para o pessoal da empresa. E quem pensa que ele deixou de ser prestativo, atuante, errou. Manoel e seus companheiros são os verdadeiros heróis, mesmo que esquecidos e jamais lembrados.

A fedentina do coxo do caminhão de lixo não pára. Já na saída do trabalho, lá pelas seis da tarde, mesmo depois do veículo ter sido lavado, o cheiro é insuportável. Após horas recolhendo resíduos na cidade, enquanto a população dorme, o odor é desumano. A reportagem da TRIBUNA percorreu duas horas do trajeto da coleta, pendurada no caminhão. Não é fácil ser um coletor. Além do cheiro fétido, o pessoal tem que ser atleta. Desce do carro. Corre para pegar os sacos. Os arremessa para o interior do veículo. Sobe na plataforma. Se segura para não cair nas curvas – o motorista é implacável. E o cheiro continua. Tudo isso por quase oito, nove horas. Mas nem tudo é sacrifício. O tempo vai passando e a turma vai brincando. A população, principalmente as crianças, interage com os coletores. “As crianças são as melhores coisas da vida. Todas elas acenam pra gente, nos respeitam”, diz o coletor Sílvio do Rego.

Sandro e o cansaço

Silvio foi carinhosamente apelidado de “Ramirez”, por se parecer muito com o ex-jogador de futebol do Cruzeiro. Hoje ele joga no Chelsea, na Inglaterra. Até pouco tempo, o nosso “Ramirez” trabalhava na construção civil. No começo do ano ficou desempregado. Mas logo carimbou sua carteira, desta vez na Seleta. Lá, para garantir a vaga, não se exige nenhuma formação acadêmica, basta força de vontade. “Nunca pensei em trabalhar como lixeiro. Mas é uma profissão digna como qualquer outra. Já me acostumei”, disse. Como sempre tentou ser jogador de futebol, tem um preparo físico invejável. Correr nem cansa mais. E olha que o cara corre mais de 15 quilômetros por noite. Parada apenas para a janta, lá pelas dez.

O inimigo

Atuando numa profissão considerada a mais baixa da escala econômica brasileira, é difícil apontar uma pessoa que tenha coragem de encarar a jornada. Por isso são heróis. Mesmo assim, os habitantes da cidade continuam a jogar vidro no meio do lixo, dificultando ainda mais a vida dos coletores. Mesmo usando luvas de proteção, os cacos são armadilha constante. “O pessoal poderia se conscientizar mais. Basta colocar o vidro separado, numa caixa de papelão”, lembra Silvio. De cada dez sacos de lixo, pelo menos um tem caco. Dados indicam que nas segundas-feiras – quando o lixo se acumula nas residências por causa do domingo – os resíduos recolhidos em toda a cidade beiram as 100 toneladas.
E a sacanagem não pára. Até animais mortos a população coloca nas lixeiras. Dias desses, Manoel apanhou uma caixa de papelão bastante pesada. Como não tem tempo de olhar seu interior, a arremessou para a prensa do caminhão. Ele só escutou o estouro. Era um cachorro morto, um pastor alemão, que acabara de ser moído. “Os restos dele explodiram em todo o caminhão. Foi a coisa mais nojenta que vi na vida. Fiquei sem comer por alguns dias”, lembra. Mas se existem espinhos, também existem flores. Manoel já encontrou R$500 no lixo.


Preconceito e ignorância

Parte da população desconhece a árdua missão dos coletores. Afinal, é fácil embalar o lixo num saco plástico e depois, simplesmente, colocá-lo na calçada, fora de casa. As mãos permanecem limpas. “O lixeiro que se vire agora”, pensam alguns. Fácil para os imortais. Difícil para os homens. Mal sabe a população que, de saco em saco, o cheiro podre vai aumentando. A roupa dos coletores, ao final do trabalho, se transforma em parte de uma das sacolas. Quase tudo fica desumano. Principalmente, quando a ignorância e o preconceito aparecem. Muitas são as histórias de intolerância narradas pelo pessoal.

Sandro Carvalho de Freitas, aos 19 anos de idade, é um novato na profissão. Até pouco tempo trabalhava ao lado do pai como técnico em refrigeração. Mas decidiu proclamar sua liberdade registrando sua carteira pela primeira vez, agora como coletor. “Minha mãe me viu sobre o caminhão e disse que sentiu vergonha”, afirmou. Constrangido, ele ainda disse que, quando o visse novamente, ela não precisaria cumprimentá-lo. “Sei que no fundo ela estava brincando. Mas isso mostra o que as pessoas pensam”.

“Às vezes tenho que entrar em algum lugar público. Me sinto como um animal frente aos olhares das pessoas. Não é legal. É preconceito mesmo”, diz Manoel. Para ele, o que falta é lembrar que, por debaixo da farda dos coletores, existe a figura humana, de um trabalhador como outro qualquer. Falta a lembrança de que a turma da coleta está realizando a parte suja de toda a comunidade. Vocês sujaram. Nós limpamos. Agradecido “seo dotô”.

Um comentário:

  1. Trabalhei por 3 anos nessa profissão e ñ tenho vergonha de dizer, pois foi apartir desse serviso q consegui adquirir meus moveis, pagar aluguel, agua, luz, etc...

    conheço o Manoel eh um pacero e tanto trabalhei com ele por 1 ano.

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