terça-feira, 21 de junho de 2011

A desgraça quase sem volta


Dilmércio Daleffe

No ano de 2010, Campo Mourão contabilizou 48 homicídios. Segundo a polícia, é bem provável que 90% deles estejam relacionados ao tráfico de drogas. Trata-se de uma guerra entre traficantes e viciados existente nas ruas da cidade. No entanto, nesta batalha imoral, quem conta as perdas são as famílias, as verdadeiras vítimas desta guerra declarada. Mesmo os envolvidos que se libertam, deixam rastros de um passado angustiado, uma vida praticamente esmagada pela ambição dos mercadores da morte: os traficantes. Numa matéria especial, Dilmércio Daleffe traz relatos deste mundo doentio. O objetivo é fazer com que a comunidade e, principalmente, as autoridades iniciem uma ampla discussão. Quando o assunto são as drogas, nunca é tarde demais para agir.

Drogas: Uma passagem apenas de ida ao inferno

Ele conheceu a maconha aos 12 anos. Aos 17 já havia experimentado a cocaína e, aos 18, já estava completamente perdido no crack. Nosso personagem, de nome Wilson, não saiu de nenhum filme americano de Quentin Tarantino. Ele é real, um garoto sem privilégios financeiros, residente em um bairro carente e que vivenciou o mundo ilícito das drogas nas ruas de Campo Mourão. Vítima como tantos outros adolescentes, hoje se diferencia dos demais porque conseguiu se levantar, deixando o caminho negro que a droga oferecia. A sua desgraça se transformou em esperança.

Wilson, um menino pardo franzino, tem hoje apenas 20 anos de idade. No entanto, tem histórias de arrepiar, aventuras negativas que tenta esquecer. Influenciado desde cedo pelos colegas, puxou o primeiro cigarro de maconha aos 12 anos numa escola pública de Campo Mourão. Mesmo assim, ainda sentia desejo em trabalhar, refletindo a personalidade da mãe, uma guerreira sem limites. Desde os 13 passou a prestar serviços em um mercadinho da periferia. Sempre buscou a postura de homem. Mas isso, até conhecer um novo produto, uma droga feita para matar e morrer: o crack.

E foi assim que aos 18 anos, novamente influenciado pelos “amigos”, experimentou o entorpecente. No início apenas fumava a substância. Logo depois, passou a usar uma lata, quando aspirava a química alucinógena. O uso passou a ser diário, perdendo os verdadeiros amigos, a confiança da família e a proximidade com o mundo real. Vivia apenas no paraíso da alucinação, escondido no mato, sujo, sem comer e afugentado do convívio humano. “Cheguei a ficar quatro dias usando a droga no mato. Esquecia de tudo, não pensava em ninguém, muito menos na minha família. Cheguei a não acreditar nem em mim mesmo. Perdi a esperança”, lembra.

Caso raro, Wilson acordou e conseguiu escapar do vício. Primeiro conheceu uma garota a quem se apaixonou. Nas primeiras recaídas pelo crack, ela passou a aconselhá-lo. Com os incessantes apelos da mãe, decretou sua libertação. Juntas, as duas resistiram e o resgataram do buraco negro em que estava metido. Hoje, Wilson está empregado, se mantém livre da droga e dos colegas viciados. Conquistou a confiança da mãe e dos verdadeiros amigos. Mantém uma conta no banco, comprou uma moto e não pensa em outra coisa senão trabalhar. O sonho é comprar uma casinha e juntar os trapos com a namorada. Tirou carteira de caminhão e ganha a vida transportando bens de uma empresa da cidade. “Nunca tive um motivo para entrar nesse mundo. Mas agora enxerguei milhares deles para sair. Nunca mais vou passar perto disso”, afirmou.

O mercador da morte

“Na minha porta batiam pessoas durante toda a noite. Todas elas em busca de drogas. Muitas, já em estado inicial de over dose”, afirma Miguel, nome fictício de um ex-traficante de Campo Mourão que, por motivos óbvios, preferiu não ser identificado. Arrependido de um passado não muito distante, presenciou os horrores a que se submetem os dependentes químicos. Como qualquer outro traficante, sem caráter e escrúpulos, não tinha pena nem mesmo do próprio irmão, um dos seus principais clientes. “Tinha que fazer dinheiro. Meu irmão chegava com a grana e eu vendia a droga”.

Miguel tinha apenas 18 anos quando conheceu de perto a figura do primeiro traficante. Precisando de trabalho, ele foi convidado a ir até o Paraguai apanhar 280 quilos de maconha para serem comercializados no Brasil. Nas barrancas do “paranazão” chega a pequena embarcação trazendo a mercadoria. Foi neste momento em que começava a se transformar em um mercador da morte. A droga foi levada para uma casa em Guaíra e lá, dividida em vários lotes, todos com destino para diversas cidades brasileiras. Como “mula” – função de traficantes que transportam a droga – ele ficou encarregado de levar a sua parte até Bauru, no interior de São Paulo. Mesmo com medo, ele chegou e, como pagamento, recebeu cerca de R$2 mil. A grande maioria dos trabalhadores do país não ganha honestamente o que ele recebeu em um único dia.

De volta a Campo Mourão, Miguel foi então convidado a vender entorpecentes em um bairro carente da cidade, local aonde ainda não havia o fétido odor do tráfico. Uma vez aceito o convite, passou a traficar sem pena. Vendia tudo o que repassavam. Mulheres, velhos, menores, não existia a quem não vendesse. Afinal, era tudo negócio. Precisava de dinheiro para não ser pressionado pelos outros traficantes. Quando os dependentes não tinham mais grana, passava-se ao escambo, ou seja, a troca de mercadorias. “Já peguei roupa, sapato, eletrônicos e até comida”, diz. Nesse ramo não existe dó, muito menos piedade. “Via pessoas quase morrendo em frente a minha casa. Elas não se contentavam e queriam mais e mais drogas”, lembra. O coração de Miguel virou uma pedra. Ele mudou com a família, ficou agressivo e chegou a cravar uma faca no peito do próprio irmão.

E foi a partir daí que Miguel enxergou que o dinheiro fácil estava saindo caro demais. Pediu desculpas ao irmão, disse não ao chefe da boca e começou a levar uma vida nornal, sem adrenalina. “No começo o traficante não queria aceitar o meu afastamento. Mas depois, acabou aceitando”, disse. Hoje, aos 25 anos de idade, ele leva uma vida comum. Tem uma esposa, uma casinha e leva consigo o aprendizado de um passado errado, imoral, a quem diz não ter nenhuma saudade.

Da prostituição ao tráfico


Conhecida no ambiente hostil das drogas pela alcunha de “Loba”, ela dedicou sete anos de sua vida aos bastidores da perverção. Aos 21 anos de idade começou a usar cocaína e, quase que instantaneamente, transformou-se em prostituta para adquirir a droga. Vivendo num estado constante de alucinação, perdeu o amor pelo próprio filho. Envolveu-se com traficantes e, depois disso, esqueceu-se da vida. “Loba” não foi exemplo para ninguém. Passou a ser viciada em crack e, ao mesmo tempo, vender drogas para sustentar o vício. Fumava 40 pedras por noite, chegando a ficar três, quatro dias fechada num quarto de motel.

Enquanto traficante, vendia para os bacanas da cidade. “Muita gente acha que é só a periferia que usa drogas. Nada disso. O tráfico também é voltado para os filhinhos de papai, pessoas influentes da sociedade, médicos e advogados”, afirma. Também presenciou o cenário do horror. Viu ameaças de morte, pedidos de execução. Parecia até que a morte estava ao seu lado.

Vendo que sua vida não tinha mais sentido, decidiu pedir ajuda a mãe. Ela então solicitou a colaboração de um pastor do bairro, Adão Adriano. “Foi ele quem me estendeu a mão e me ajudou a sair daquela vida”, disse. “Loba” está livre das drogas há quase dois anos. Segundo ela, foi na força das orações a Deus quando obteve forças para deixar o vício.

"Loba" hoje ensina ex-dependentes

“Salvando vidas”

Aos 36 anos de idade, o pastor Adão Adriano é um simples mortal. Tem fome, sede, faz suas orações, sente dor. É como qualquer um de nós. No entanto, se diferencia dos demais pela vontade voluntária em ajudar. Há pouco mais de um ano, montou um abrigo a viciados nos fundos da própria casa, no Cohapar. A primeira “hóspede” foi “Loba”. Liberta do vício, é ela quem o ajuda hoje a fazer orações e despertar a lucidez aos que ainda continuam doentes. “A vida dela estava destruída. Mas aos poucos, reconquistou sua auto-estima e largou o vício”, diz Adriano.

Sem financiamento municipal, ou de qualquer outro governo, o pastor vem tratando dez rapazes do sofrimento da droga. Apenas doações da igreja e de amigos é que sustentam o lar, nada mais. Sob o varal de roupas molhadas, ele possui seis cadeiras de plástico e uma mesa velha de madeira. É ali onde os dependentes oram e têm o aprendizado sob a tortura de um único foco de 60 watts. A precariedade do lugar não é nada comparado a força de vontade de cada um deles em deixar o vício. “Já tivemos dezenas de pessoas aqui. Quando vemos que já estão prontos, eles saem e voltam para suas casas”, afirma Adriano. Mesmo assim, ele não esconde que, 40% dos abrigados retorna às drogas.

De mãos dadas com o demônio


O nome dele é Maurício, mas conhecido no meio policial e da bandidagem como “Toru”. Aos 15 anos já consumia álcool, fumava cigarros e maconha. Como vivia bêbado, passou a usar cocaína e crack para cortar o efeito da bebida. Cada vez mais alucinado, injetava cocaína nas veias e cheirava thinner. O poder do vício começou a transformá-lo em um adolescente violento. Passou então a roubar e bater em suas vítimas. O ápice aconteceu depois que tentou esfaquear um policial, em frente a casa de sua mãe. Sem ajuda para um tratamento adequado, tentou se matar. Nada segurava “Toru”. A família já não o via mais como um ser humano, apenas como um sub-produto da droga, uma criatura sem domínio. Era o próprio demônio em pessoa.

Maurício pediu ajuda e foi atendido. Ele chegou ao abrigo do pastor Adriano há cerca de um ano. Desde então, se arrependeu de tudo o que já havia feito. Se libertou das drogas e agora trabalha e mantém uma esposa, que inclusive, está grávida. “Eu achava que não tinha mais volta. Roubava até cachorro”, lembra. Vendo adolescentes que se drogam nas ruas da cidade, ele até tenta convencê-los a parar. “Mas é difícil”, garante.

O traficante de primeira e última viagem


Aos 15 anos, “Lagartixa” foi mandado ao Paraguai para apanhar 55 quilos de maconha. O destino era o tráfico nas ruas de Campo Mourão. Com a droga já dentro de uma bolsa, adentrou em um ônibus de linha chegando até Umuarama. Após deixar a rodoviária, o coletivo foi parado na rodovia pela polícia. “Lagartixa”, um adolescente franzino, um traficante iniciante ainda sem experiência, acabava de ser traído. Ele foi denunciado por outros comparsas e a “casa acabava de cair”.

Foi preso e levado ao Serviço de Assistência Social (SAS) de Campo Mourão. Mas lá, não ficou por muito tempo. Já nas ruas novamente, começou a vender e usar maconha e crack. Sem limites, passou a roubar. Caiu novamente, agora com uma moto roubada. Voltou ao SAS. Sem a ajuda da família, teve tratamento no abrigo do pastor Adriano, onde até hoje se recupera do passado “químico”. “Só Deus mesmo para me livrar da dependência”.

Campo Mourão está doente

Em um recente relatório divulgado pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) sobre as cidades e o crack, Campo Mourão consta como um dos municípios que sofre com o problema. Além disso, segundo a Polícia Rodoviária Federal, pela sua localização, acaba sendo uma rota para o tráfico. O problema é ainda mais grave quando são analisadas as idades em que os usuários começam no tráfico. Se antes os adolescentes mais jovens tinham 17 anos, agora com 10 ou 11 anos já estão envolvidos.

De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, embora a cidade não mantenha um centro específico para o tratamento a dependentes químicos, existe um ambulatório de Saúde Mental voltado ao atendimento de casos desta natureza – drogas e álcool. Dados indicam que, somente em 2010, 406 pessoas passaram pelo ambulatório. A idade dos pacientes varia de 12 a 70 anos. Os casos que necessitam de internação são encaminhados a Maringá e a Comunidade Terapêutica Redenção (CTR), de Campo Mourão. No entanto, segundo informações levantadas, há sim a possibilidade do município contar, no futuro, com um centro de internações próprias. Atualmente, um médico contratado atua duas vezes por semana no ambulatório.

O município também explica que as famílias vítimas da dependência de seus filhos não estão desamparadas. Existem portas de entrada para os familiares, entre elas as unidades básicas de saúde, além do próprio Posto 24 horas, principalmente, se o paciente estiver em crise aguda. Quanto ao papel municipal frente a prevenção dos entorpecentes às crianças, existe o projeto “Troca”, realizado nas escolas da cidade, incluindo distribuição de material e palestras.

Um comentário:

  1. Olá Dilmercio, morei em Campo Mourão durante nove anos, numa época em que a cidade ainda não era considerada "doente". Seu texto retrata uma triste e preocupante realidade.

    Néia Lambert

    ResponderExcluir