segunda-feira, 27 de junho de 2011

Lixões de ontem. Aterros de hoje



Até o início dos anos 80, o país nem discutia sobre a questão dos aterros sanitários. Lixões a céu aberto, com a desumana disputa por alimentos entre animais e pessoas eram comuns. Mas os novos rumos do Brasil o levaram a um crescimento, principalmente, no respeito ambiental. Hoje, lixões foram condenados. Mesmo assim ainda existem maus exemplos na região de Campo Mourão, como em Nova Tebas onde o lixão municipal criou um cenário de horror à beira da rodovia. Mas também podem ser vistos bons resultados, como em Terra Boa, onde os resíduos são “exportados” corretamente à Cianorte.

Dilmércio Daleffe

Ninguém deseja manter o lixo próximo de sua casa. As prefeituras, também não. Mais fácil seria jogar os detritos domésticos em um terreno qualquer, de preferência longe dos olhos da população e encerrar o caso. Assim, vez em quando, remexer a terra e dar uma “garibada” no problema. Há 20 anos, esta era a realidade da maioria das cidades brasileiras. Mas uma legislação apareceu e começou a modificar a situação. A cruz começou a ser lavada. Hoje, no entanto, alguns municípios insistem em manter o lixo “escondido” dos eleitores, embora a céu aberto, ameaçando a saúde pública e agravando a degradação ambiental. Ao mesmo tempo, outras prefeituras solucionaram o problema definitivamente apenas, exportando o seu lixo.


Lixo é lixo e ponto final. Ninguém em sã consciência gostaria de lidar com ele. Trata-se de um sub-produto humano, de restos de tudo o que, em tese, não serve mais para nada. Por isso mesmo começou ser um dos maiores problemas dos tempos modernos. A medida em que a população aumenta, ele cresce. Em 2002, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) aperfeiçoou a versão de aterros sanitários, principalmente, por entender que lixões a céu aberto comprometem a qualidade de vida das populações. Para isso, o órgão considerou as dificuldades que os municípios de pequeno porte enfrentam na implantação e operação de aterro sanitário de resíduos sólidos. A obra não é barata, e necessita de inúmeros procedimentos ambientais. Ou seja, requer tempo, dinheiro e muita burocracia. Em resumo, dilema aos nobres prefeitos.



Por estes e outros motivos, municípios como Terra Boa – 52 quilômetros de Campo Mourão – decidiram por uma iniciativa inédita do estado. Lá, o lixo não é mais um problema, simplesmente, porque eles deram um fim, literalmente, nos resíduos sólidos. Há dois anos, a prefeitura decidiu “exportar” os detritos domésticos a um aterro padrão em Cianorte. Lixo mesmo na cidade só é visto nas lixeiras das casas e em nenhum outro local. O caminhão passa, apanha as sacolinhas e depois desaparece. É como se fosse virtual. Depois disso percorre 23 quilômetros até o destino final, no aterro da Sanepar, em Cianorte. Pelo trabalho, a população paga a bagatela de R$70 a tonelada, cerca de R$10 a R$12 mil por mês.

“Ainda é barato frente ao que teríamos que pagar se mantivéssemos um aterro aqui”, afirma Claudemir Batista de Souza, secretário Administrativo de Terra Boa. Segundo ele, somente para construir um local destinado ao lixo seriam necessários R$600 mil. Ele explica que, além de ter menos custos, hoje, ainda se livra dos burocráticos processos do Instituto Ambiental do Paraná (Iap). “Definitivamente, não compensa”, disse. Até pouco tempo, Terra Boa recolhia cerca de 9 toneladas de lixo ao dia. Após um trabalho de conscientização popular, quando ensinou-se a importância da coleta seletiva de recicláveis, o lixo despencou para cinco toneladas ao dia.

Não é exagero dizer que Terra Boa é bastante organizada quanto ao lixo. Além dos resíduos serem “exportados” – solucionando de vez o antigo problema – um carro passa duas vezes por semana em toda a cidade recolhendo os recicláveis. Quase todo mundo colabora. O material é levado para uma cooperativa de coletores onde fazem a separação para depois vender o produto. Hoje não se vêem mais pessoas com carrinhos recolhendo papelão pelas ruas. É que eles foram organizados pelo município. São seis pessoas, cada uma recebe quase R$600 por mês. Um deles é o seo Cirilo José de Jesus. Aos 78 anos de idade ele se orgulha em participar do grupo. Aposentado, ele se diz contente com o novo emprego. “Podia ficar em casa. Mas a minha natureza não deixa eu ficar parado”, diz.




Exemplo a não ser seguido

Mas nem todos os municípios têm boas idéias para estancar a ferida do lixo. Distante 72 quilômetros de Campo Mourão, Nova Tebas, por exemplo, mantém um verdadeiro criadouro de moscas e varejeiras, um lixão a céu aberto. Lá, às margens da rodovia BR-487, sem nenhum cuidado e proteção, a prefeitura continua a semear os resíduos. Quase que diariamente, caminhões da prefeitura semeiam detritos de toda a natureza. É todo o lixo da cidade, desde orgânicos, passando por restos de merenda escolar, até remédios veterinários. Uma prática comum durante muitos anos. Muita gente continua sobrevivendo do local.

Mas de acordo com informações repassadas pela própria prefeitura, ninguém, oficialmente dizendo, tem orgulho da situação. Boas notícias também acabam de chegar. É que recursos estão a caminho para que o município inicie a construção de um aterro regulamentado, seguindo as normas ambientais. A obra deve ser iniciada na próxima semana. Talvez esta seja a saída definitiva para o cenário irreal confeccionado durante vários anos às margens da BR-487 pelos prefeitos anteriores de Nova Tebas.

terça-feira, 21 de junho de 2011

A desgraça quase sem volta


Dilmércio Daleffe

No ano de 2010, Campo Mourão contabilizou 48 homicídios. Segundo a polícia, é bem provável que 90% deles estejam relacionados ao tráfico de drogas. Trata-se de uma guerra entre traficantes e viciados existente nas ruas da cidade. No entanto, nesta batalha imoral, quem conta as perdas são as famílias, as verdadeiras vítimas desta guerra declarada. Mesmo os envolvidos que se libertam, deixam rastros de um passado angustiado, uma vida praticamente esmagada pela ambição dos mercadores da morte: os traficantes. Numa matéria especial, Dilmércio Daleffe traz relatos deste mundo doentio. O objetivo é fazer com que a comunidade e, principalmente, as autoridades iniciem uma ampla discussão. Quando o assunto são as drogas, nunca é tarde demais para agir.

Drogas: Uma passagem apenas de ida ao inferno

Ele conheceu a maconha aos 12 anos. Aos 17 já havia experimentado a cocaína e, aos 18, já estava completamente perdido no crack. Nosso personagem, de nome Wilson, não saiu de nenhum filme americano de Quentin Tarantino. Ele é real, um garoto sem privilégios financeiros, residente em um bairro carente e que vivenciou o mundo ilícito das drogas nas ruas de Campo Mourão. Vítima como tantos outros adolescentes, hoje se diferencia dos demais porque conseguiu se levantar, deixando o caminho negro que a droga oferecia. A sua desgraça se transformou em esperança.

Wilson, um menino pardo franzino, tem hoje apenas 20 anos de idade. No entanto, tem histórias de arrepiar, aventuras negativas que tenta esquecer. Influenciado desde cedo pelos colegas, puxou o primeiro cigarro de maconha aos 12 anos numa escola pública de Campo Mourão. Mesmo assim, ainda sentia desejo em trabalhar, refletindo a personalidade da mãe, uma guerreira sem limites. Desde os 13 passou a prestar serviços em um mercadinho da periferia. Sempre buscou a postura de homem. Mas isso, até conhecer um novo produto, uma droga feita para matar e morrer: o crack.

E foi assim que aos 18 anos, novamente influenciado pelos “amigos”, experimentou o entorpecente. No início apenas fumava a substância. Logo depois, passou a usar uma lata, quando aspirava a química alucinógena. O uso passou a ser diário, perdendo os verdadeiros amigos, a confiança da família e a proximidade com o mundo real. Vivia apenas no paraíso da alucinação, escondido no mato, sujo, sem comer e afugentado do convívio humano. “Cheguei a ficar quatro dias usando a droga no mato. Esquecia de tudo, não pensava em ninguém, muito menos na minha família. Cheguei a não acreditar nem em mim mesmo. Perdi a esperança”, lembra.

Caso raro, Wilson acordou e conseguiu escapar do vício. Primeiro conheceu uma garota a quem se apaixonou. Nas primeiras recaídas pelo crack, ela passou a aconselhá-lo. Com os incessantes apelos da mãe, decretou sua libertação. Juntas, as duas resistiram e o resgataram do buraco negro em que estava metido. Hoje, Wilson está empregado, se mantém livre da droga e dos colegas viciados. Conquistou a confiança da mãe e dos verdadeiros amigos. Mantém uma conta no banco, comprou uma moto e não pensa em outra coisa senão trabalhar. O sonho é comprar uma casinha e juntar os trapos com a namorada. Tirou carteira de caminhão e ganha a vida transportando bens de uma empresa da cidade. “Nunca tive um motivo para entrar nesse mundo. Mas agora enxerguei milhares deles para sair. Nunca mais vou passar perto disso”, afirmou.

O mercador da morte

“Na minha porta batiam pessoas durante toda a noite. Todas elas em busca de drogas. Muitas, já em estado inicial de over dose”, afirma Miguel, nome fictício de um ex-traficante de Campo Mourão que, por motivos óbvios, preferiu não ser identificado. Arrependido de um passado não muito distante, presenciou os horrores a que se submetem os dependentes químicos. Como qualquer outro traficante, sem caráter e escrúpulos, não tinha pena nem mesmo do próprio irmão, um dos seus principais clientes. “Tinha que fazer dinheiro. Meu irmão chegava com a grana e eu vendia a droga”.

Miguel tinha apenas 18 anos quando conheceu de perto a figura do primeiro traficante. Precisando de trabalho, ele foi convidado a ir até o Paraguai apanhar 280 quilos de maconha para serem comercializados no Brasil. Nas barrancas do “paranazão” chega a pequena embarcação trazendo a mercadoria. Foi neste momento em que começava a se transformar em um mercador da morte. A droga foi levada para uma casa em Guaíra e lá, dividida em vários lotes, todos com destino para diversas cidades brasileiras. Como “mula” – função de traficantes que transportam a droga – ele ficou encarregado de levar a sua parte até Bauru, no interior de São Paulo. Mesmo com medo, ele chegou e, como pagamento, recebeu cerca de R$2 mil. A grande maioria dos trabalhadores do país não ganha honestamente o que ele recebeu em um único dia.

De volta a Campo Mourão, Miguel foi então convidado a vender entorpecentes em um bairro carente da cidade, local aonde ainda não havia o fétido odor do tráfico. Uma vez aceito o convite, passou a traficar sem pena. Vendia tudo o que repassavam. Mulheres, velhos, menores, não existia a quem não vendesse. Afinal, era tudo negócio. Precisava de dinheiro para não ser pressionado pelos outros traficantes. Quando os dependentes não tinham mais grana, passava-se ao escambo, ou seja, a troca de mercadorias. “Já peguei roupa, sapato, eletrônicos e até comida”, diz. Nesse ramo não existe dó, muito menos piedade. “Via pessoas quase morrendo em frente a minha casa. Elas não se contentavam e queriam mais e mais drogas”, lembra. O coração de Miguel virou uma pedra. Ele mudou com a família, ficou agressivo e chegou a cravar uma faca no peito do próprio irmão.

E foi a partir daí que Miguel enxergou que o dinheiro fácil estava saindo caro demais. Pediu desculpas ao irmão, disse não ao chefe da boca e começou a levar uma vida nornal, sem adrenalina. “No começo o traficante não queria aceitar o meu afastamento. Mas depois, acabou aceitando”, disse. Hoje, aos 25 anos de idade, ele leva uma vida comum. Tem uma esposa, uma casinha e leva consigo o aprendizado de um passado errado, imoral, a quem diz não ter nenhuma saudade.

Da prostituição ao tráfico


Conhecida no ambiente hostil das drogas pela alcunha de “Loba”, ela dedicou sete anos de sua vida aos bastidores da perverção. Aos 21 anos de idade começou a usar cocaína e, quase que instantaneamente, transformou-se em prostituta para adquirir a droga. Vivendo num estado constante de alucinação, perdeu o amor pelo próprio filho. Envolveu-se com traficantes e, depois disso, esqueceu-se da vida. “Loba” não foi exemplo para ninguém. Passou a ser viciada em crack e, ao mesmo tempo, vender drogas para sustentar o vício. Fumava 40 pedras por noite, chegando a ficar três, quatro dias fechada num quarto de motel.

Enquanto traficante, vendia para os bacanas da cidade. “Muita gente acha que é só a periferia que usa drogas. Nada disso. O tráfico também é voltado para os filhinhos de papai, pessoas influentes da sociedade, médicos e advogados”, afirma. Também presenciou o cenário do horror. Viu ameaças de morte, pedidos de execução. Parecia até que a morte estava ao seu lado.

Vendo que sua vida não tinha mais sentido, decidiu pedir ajuda a mãe. Ela então solicitou a colaboração de um pastor do bairro, Adão Adriano. “Foi ele quem me estendeu a mão e me ajudou a sair daquela vida”, disse. “Loba” está livre das drogas há quase dois anos. Segundo ela, foi na força das orações a Deus quando obteve forças para deixar o vício.

"Loba" hoje ensina ex-dependentes

“Salvando vidas”

Aos 36 anos de idade, o pastor Adão Adriano é um simples mortal. Tem fome, sede, faz suas orações, sente dor. É como qualquer um de nós. No entanto, se diferencia dos demais pela vontade voluntária em ajudar. Há pouco mais de um ano, montou um abrigo a viciados nos fundos da própria casa, no Cohapar. A primeira “hóspede” foi “Loba”. Liberta do vício, é ela quem o ajuda hoje a fazer orações e despertar a lucidez aos que ainda continuam doentes. “A vida dela estava destruída. Mas aos poucos, reconquistou sua auto-estima e largou o vício”, diz Adriano.

Sem financiamento municipal, ou de qualquer outro governo, o pastor vem tratando dez rapazes do sofrimento da droga. Apenas doações da igreja e de amigos é que sustentam o lar, nada mais. Sob o varal de roupas molhadas, ele possui seis cadeiras de plástico e uma mesa velha de madeira. É ali onde os dependentes oram e têm o aprendizado sob a tortura de um único foco de 60 watts. A precariedade do lugar não é nada comparado a força de vontade de cada um deles em deixar o vício. “Já tivemos dezenas de pessoas aqui. Quando vemos que já estão prontos, eles saem e voltam para suas casas”, afirma Adriano. Mesmo assim, ele não esconde que, 40% dos abrigados retorna às drogas.

De mãos dadas com o demônio


O nome dele é Maurício, mas conhecido no meio policial e da bandidagem como “Toru”. Aos 15 anos já consumia álcool, fumava cigarros e maconha. Como vivia bêbado, passou a usar cocaína e crack para cortar o efeito da bebida. Cada vez mais alucinado, injetava cocaína nas veias e cheirava thinner. O poder do vício começou a transformá-lo em um adolescente violento. Passou então a roubar e bater em suas vítimas. O ápice aconteceu depois que tentou esfaquear um policial, em frente a casa de sua mãe. Sem ajuda para um tratamento adequado, tentou se matar. Nada segurava “Toru”. A família já não o via mais como um ser humano, apenas como um sub-produto da droga, uma criatura sem domínio. Era o próprio demônio em pessoa.

Maurício pediu ajuda e foi atendido. Ele chegou ao abrigo do pastor Adriano há cerca de um ano. Desde então, se arrependeu de tudo o que já havia feito. Se libertou das drogas e agora trabalha e mantém uma esposa, que inclusive, está grávida. “Eu achava que não tinha mais volta. Roubava até cachorro”, lembra. Vendo adolescentes que se drogam nas ruas da cidade, ele até tenta convencê-los a parar. “Mas é difícil”, garante.

O traficante de primeira e última viagem


Aos 15 anos, “Lagartixa” foi mandado ao Paraguai para apanhar 55 quilos de maconha. O destino era o tráfico nas ruas de Campo Mourão. Com a droga já dentro de uma bolsa, adentrou em um ônibus de linha chegando até Umuarama. Após deixar a rodoviária, o coletivo foi parado na rodovia pela polícia. “Lagartixa”, um adolescente franzino, um traficante iniciante ainda sem experiência, acabava de ser traído. Ele foi denunciado por outros comparsas e a “casa acabava de cair”.

Foi preso e levado ao Serviço de Assistência Social (SAS) de Campo Mourão. Mas lá, não ficou por muito tempo. Já nas ruas novamente, começou a vender e usar maconha e crack. Sem limites, passou a roubar. Caiu novamente, agora com uma moto roubada. Voltou ao SAS. Sem a ajuda da família, teve tratamento no abrigo do pastor Adriano, onde até hoje se recupera do passado “químico”. “Só Deus mesmo para me livrar da dependência”.

Campo Mourão está doente

Em um recente relatório divulgado pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) sobre as cidades e o crack, Campo Mourão consta como um dos municípios que sofre com o problema. Além disso, segundo a Polícia Rodoviária Federal, pela sua localização, acaba sendo uma rota para o tráfico. O problema é ainda mais grave quando são analisadas as idades em que os usuários começam no tráfico. Se antes os adolescentes mais jovens tinham 17 anos, agora com 10 ou 11 anos já estão envolvidos.

De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, embora a cidade não mantenha um centro específico para o tratamento a dependentes químicos, existe um ambulatório de Saúde Mental voltado ao atendimento de casos desta natureza – drogas e álcool. Dados indicam que, somente em 2010, 406 pessoas passaram pelo ambulatório. A idade dos pacientes varia de 12 a 70 anos. Os casos que necessitam de internação são encaminhados a Maringá e a Comunidade Terapêutica Redenção (CTR), de Campo Mourão. No entanto, segundo informações levantadas, há sim a possibilidade do município contar, no futuro, com um centro de internações próprias. Atualmente, um médico contratado atua duas vezes por semana no ambulatório.

O município também explica que as famílias vítimas da dependência de seus filhos não estão desamparadas. Existem portas de entrada para os familiares, entre elas as unidades básicas de saúde, além do próprio Posto 24 horas, principalmente, se o paciente estiver em crise aguda. Quanto ao papel municipal frente a prevenção dos entorpecentes às crianças, existe o projeto “Troca”, realizado nas escolas da cidade, incluindo distribuição de material e palestras.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Ensaio sobre a terra e o céu

Tudo ocorre entre o céu e a terra. Mas poucas vezes paramos para avistar e observar o espetáculo da junção dos dois.

Dilmércio Daleffe













A feirinha de todas as tribos


Dilmércio Daleffe

Curitiba, domingo 9h da manhã, frio de 5 graus. Ficar na cama até o meio dia? Claro que não. Poucas coisas merecem tanto empenho para deixar o cobertor quentinho, ainda mais na fria capital paranaense. Uma delas é visitar a famosa Feira de Arte e Artesanato do Largo da Ordem, ou simplesmente, a Feirinha do Largo. Certamente é um programa sem erros, a menos que chova. O local é uma miscelânea de artesanatos, criações artísticas, música, colecionadores, apaixonados por carros e motos antigas. Gente de tudo quanto é jeito. Negros, amarelos, brancos, hippies, donas de casa, Hare Krishnas, brasileiros, estrangeiros e, pasmem, até curitibanos.


Montada na área histórica de Curitiba, centro, sempre aos domingos, a feira começa a ser estruturada ainda cedo, lá pelas seis. Os estandes são desmontados lá pela uma da tarde. Seus mais de mil expositores encaram a jornada como negócio e, ao mesmo tempo, diversão. Afinal, são apenas algumas horas em que encontram cerca de 15 mil visitantes, todos em busca de um passeio diferente e porque não dizer, surpreendente. Além das compras, o turista também pode conhecer atrações como a Igreja da Ordem, o Memorial de Curitiba e a Casa Romário Martins – a mais antiga da capital.


Ali, não parece o Brasil. O local se assemelha àquelas feirinhas européias, como Camden Town, em Londres. É uma mistura de tudo. Em meio aos prédios históricos de Curitiba, a multidão se espreme numa “confusão completamente organizada”. Os esbarrões são comuns. Já, a paciência, uma virtude. Mas vale a pena passar por isso. De tão grande, o visitante não sabe nem por onde começar a andança. Com o passar do tempo, os artistas parecem ter encontrado um cantinho para cada uma das artes expostas. Os carros antigos, por exemplo, estão todos numa ruazinha, separados das motos que estão mais abaixo. Os motoqueiros e suas roupas imponentes ficam num pub, em frente às máquinas.


Noutro cantinho estão concentrados os artistas plásticos e suas telas espetaculares. Abstratos, paisagens, natureza morta. Tem arte pra todos os gostos. As compras podem ser realizadas até mesmo com cartão de crédito, com direito inclusive, à arte da barganha. Ali, o negócio é feito diretamente com o próprio artista. Cyro Vidal expõe na feira há 20 anos. Todos os domingos, ao lado da esposa, o casal vai faturando com os visitantes. “Ás vezes vendemos bem. Ás vezes não vendemos nada. Cada dia é um dia diferente” disse o ex-funcionário da Copel.


Mas seja qual for a direção escolhida, o turista verá de tudo. Roupas, bijuterias, artesanatos, mandalas, sapatos, bolsas, brinquedos, antiguidades. Colecionadores de selos, moedas e dinheiro se amontoam em uma das esquinas. Já os músicos são um show, literalmente. Na parte superior da feira encontra-se uma menina, não mais que 22 anos. Ela e sua pequena sanfona encantam. Músicas francesas, clássicos internacionais. Apenas ela e o instrumento, sem voz. Ao chão o seu chapéu, aguardando o prêmio do artista. Um talento surpreendente. Nem parece Brasil. A cena lembra o metrô londrino, local para músicos de todo o mundo ganharem seus trocados.


Mais ao meio da feira outra grata surpresa. Um senhor de mais de 80 anos de idade, também “gaiteiro”, exalando tangos. Uma figura sem igual. Um talento sobrenatural. Poderia estar em casa, com os netos. Mas já faz parte da Feirinha do Largo. É membro do cotidiano das manhãs daquele centro histórico. Ao invés do chapéu, uma latinha. Ela ainda estava vazia. Enquanto isso, dois outros músicos, fãs de Raul Seixas, tocavam melodias eternizadas pelo ídolo. Um dos “Raul” estava com caixa de som e microfone. Já o outro era mais humilde, estava acompanhado apenas de um violão.


Quem anda tem fome. E para isso a feira está repleta de atrações gastronômicas. Acarajé para os mais fortes. Pierogi, empanadas argentinas e tacos mexicanos para aflorar as culturas. Caldo de cana, melado ou um simples pastel, para os menos exigentes. Fora isso, uma infinidade de pubs, cozinha árabe e até um restaurante alemão estão lá, prontos para todos. Chopp gelado e comida quente.


Na parte inferior do Largo espaço para expositores ousados. Livros e revistas, novas e usadas, mais antiguidades, quinquilharias, materiais de trocas. Até mesmo um estande de rádios antigos no meio do público. Mário Silveira vem comercializando os aparelhos há menos de dois anos. Ao lado do sócio, Augusto, os dois adquirem os equipamentos, os concertam e depois os revendem. Todos estão em perfeito estado de funcionamento. São relíquias do século passado e que enchem os olhos de quem passa. Mário – que é bancário durante a semana - disse que o seu primeiro rádio veio de Campo Mourão. “Um dia estava passeando por lá e ganhei da família Brezezinski”, lembra. O aparelho está guardado até hoje.




História

A Feira do Largo despertou o interesse da população ainda na década de 60, quando funcionava na Praça Osório. Mas já no início da década de 70, um grupo de artistas populares que tinha por objetivo valorizar a cultura e divulgar a arte se instalou na Praça Zacarias. Já em 1972, tinha 57 expositores. Em 1974, a Feirinha mudou de lugar e foi parar no Largo da Ordem, com a criação do “Mercado Popular”, que tinha como atividade principal: o escambo, ou a venda de objetos de segunda mão. Esta visão de escambo, algumas vezes foi incentivada pela própria Fundação Cultural de Curitiba, que em 1977 lançou o programa “Troca tudo na feira”, tentando resgatar uma prática antiga na cidade, que acontecia em outro ponto – no Cine Curitibano.

Centro Histórico

O Largo da Ordem é o coração do Setor Histórico, decretado em 1971. Mas seu nome oficial é Largo Coronel Enéas, em homenagem ao coronel Benedito Enéas de Paula desde 1917. Já foi Páteo de Nossa Senhora do Terço, Páteo da Capela e Páteo de São Francisco das Chagas. Em seu centro existiu chafariz, demolido quando da instalação da rede de água e esgoto. Até hoje conserva o antigo bebedouro para animais. Ainda ecoa, na memória dos curitibanos, o alegre pregão dos colonos, vendendo os bons frutos da terra transportados em carroças, da periferia para o centro.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Cidades a mercê da sorte e dos santos




Dilmércio Daleffe

Farol está praticamente no escuro, pelo menos em relação à segurança pública. Lá, além da Polícia Civil não mais existir nos últimos oito anos, são apenas quatro policiais militares para uma população de quatro mil habitantes. Ou seja, um PM para cada mil pessoas. Mas isso na teoria. Na prática, a situação é bem pior. Becker é um dos PMs que trabalha na cidade. Na segunda-feira, enquanto fazia a guarda do mini presídio feminino, não havia nenhum outro policial nas ruas. Dois estavam de folga e o quarto chegava à noite. Em resumo, os PMs são como o sol e a lua, nunca atuam juntos. Mesmo que atuassem não conseguiriam fazer muita coisa com uma só viatura.

Becker é um exemplo daqueles PMs dedicados ao trabalho. Mesmo assim, já mostrava um aspecto cansado, de exaustão. Conta ele que, além de realizar as funções da Polícia Civil, ainda cuida da cadeia e faz o leva e traz das detentas ao hospital. “Hoje levei uma presa até Campo Mourão. Depois voltei e levei outras duas ao hospital daqui”, disse. Enquanto saiu, o prédio da delegacia ficou sem a proteção policial. Foge quem quer. E falando nisso, somente neste ano foram duas as foragidas de Farol. Com a rotina estressante, Becker ainda sofre com os intensos trotes diários ao telefone. Enquanto dava entrevista, atendeu a uma ligação. Do outro lado o xingaram de “burro” e “porco”. “Aqui é assim”, lamentou.

O prédio se resume a uma edificação antiga, com muros altos e arame farpado. Algumas paredes estão rachadas devido à erosão da terra arenosa, nos fundos da delegacia. Na recepção três pequenas salas, uma delas com TV. As ocorrências são feitas ali mesmo, com o próprio Becker quando ele está no prédio. Hoje são 14 as detentas. Apenas mulheres. A população brinca com os PMs, dizendo que eles estão no paraíso. Mas qual paraíso é cercado com grades, arame farpado e mulheres criminosas? Sem chance.




Dina Cardoso, a prefeita da cidade, está preocupada. “Precisaríamos de pelo menos sete policiais”, afirma. De acordo com ela, foram muitas as solicitações ao governo para que a cidade tivesse maior efetivo. No entanto, recentemente, recebeu comunicado indicando uma luz – como um farol – no fim do túnel. Nos próximos meses, todas as detentas da cidade devem deixar o prédio local, desafogando um pouco o trabalho dos PMs no município. Católica, ela lembra que Farol não é violenta – o último assassinato ocorreu em setembro de 2010. “O Cristo que colocamos na entrada da cidade está nos abençoando. Nem mesmo registros de assaltos temos visto”, disse. Em relação ao número de vereadores da cidade, quando comparado ao de policiais, ela afirmou que não precisariam ser nove. “Poderia ser um pouco menos, sim”, disse.

Uma delegacia no parquinho

Em Luiziana, o prédio que acolhe os quatro únicos policiais militares nem ao estado pertence. Trata-se de uma edificação antiga, mantida pela própria prefeitura num local onde deveria conter um parquinho infantil. Sim, ao invés de existirem crianças brincando, conforme diz a placa ainda resistente ao tempo, encontra-se a sede da PM. O local se resume em tranqüilidade. Sem muitas ocorrências, até as duas celas foram desativadas. Lá, ao invés de presos, temos uma moto e algumas bicicletas. Todos os detidos são encaminhados a Campo Mourão. Por esse motivo, os PMs têm um trabalho a menos que outras delegacias da região.
Atualmente são pouco mais de sete mil habitantes em Luiziana para apenas quatro policiais. É muito pouco, mas ainda, o suficiente para atender os míseros chamados da população. De acordo com o único PM de plantão - ele não quis ser identificado -, o último assassinato ocorreu em 2010. Fora isso, não existem muitos outros fatos importantes por lá. “O que mais temos por aqui são afogamentos e suicídios”, disse. Ainda assim, são os PMs que fazem parte do trabalho que deveria ser da Polícia Civil, uma vez que a instituição não existe na cidade.


Católico e ministro da Eucaristia da igreja local, o prefeito Cláudio Pol concorda que o número de policiais na cidade é pequeno. “Deveria ser maior, sim. Mas já pedimos reforço ao governo do estado”, disse. Devoto de Nossa Senhora, ele carrega a imagem da santa até na tela do celular. “Eu tenho pedido proteção divina a nossa cidade. Mas só isso não adianta”, revela. Ele preferiu não repercutir sobre o fato do seu município manter mais vereadores a policiais.

A realidade

Para o delegado chefe da 16ª Sub Divisão Policial de Campo Mourão, José Aparecido Jacovós, em pelos menos três municípios da região – Farol, Janiópolis e Luiziana – a Polícia Civil deixou de atuar mais incisivamente. Ele explica que a instituição até existia há cerca de oito anos, quando o governador Roberto Requião decidiu acabar com os conhecidos “delegados calças-curtas”. Segundo ele, depois desta medida, a PM teve que suprir o atendimento às populações locais. No entanto, ele destaca que, mesmo assim, estas cidades continuam sendo atendidas pela 16ª SDP, apesar das dificuldades. “Nenhum inquérito está parado”, afirmou.

Juntas, Farol, Luiziana e Janiópolis possuem ao todo 13 policiais militares, nenhum policial civil e 27 vereadores. Em resumo, os três municípios mantém o dobro de vereadores em relação ao número de policiais. Para o Tenente Coronel Geraldo Moliani, comandante geral do 11º Batalhão de Polícia Militar de Campo Mourão, a situação realmente preocupa. No entanto, há uma boa expectativa de que, nos próximos meses, o efetivo comece a aumentar. Isso porque o governo do estado deve abrir treinamento em Maringá, equacionando aos poucos o déficit de homens na região. Dados indicam que atualmente, a PM do estado está defasada em pelo menos 8 mil homens.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Os heróis trabalham sujos


Dilmércio Daleffe

Em seus 36 anos de idade, Manoel Joaquim de Oliveira Filho dedicou 15 deles a coleta do lixo em Campo Mourão. Ele trabalha na Seleta – empresa contratada pelo município para dar um final em todo lixo da cidade. Mas antes dela, já vinha atuando como coletor, ou simplesmente, lixeiro. Desde os 21 anos, deixou de lado a agricultura ao lado dos pais, para contribuir na limpeza pública. Também abdicou do sonho em ser bombeiro. Queria combater o fogo, ser um membro atuante da comunidade, ser prestativo. Almejava ser um herói. No entanto, o ideal ficou de lado. Hoje, é o mais experiente no trabalho, servindo inclusive de exemplo aos mais novos. O trabalho é sujo, mas a profissão é limpa, digna. Orgulho para o pessoal da empresa. E quem pensa que ele deixou de ser prestativo, atuante, errou. Manoel e seus companheiros são os verdadeiros heróis, mesmo que esquecidos e jamais lembrados.

A fedentina do coxo do caminhão de lixo não pára. Já na saída do trabalho, lá pelas seis da tarde, mesmo depois do veículo ter sido lavado, o cheiro é insuportável. Após horas recolhendo resíduos na cidade, enquanto a população dorme, o odor é desumano. A reportagem da TRIBUNA percorreu duas horas do trajeto da coleta, pendurada no caminhão. Não é fácil ser um coletor. Além do cheiro fétido, o pessoal tem que ser atleta. Desce do carro. Corre para pegar os sacos. Os arremessa para o interior do veículo. Sobe na plataforma. Se segura para não cair nas curvas – o motorista é implacável. E o cheiro continua. Tudo isso por quase oito, nove horas. Mas nem tudo é sacrifício. O tempo vai passando e a turma vai brincando. A população, principalmente as crianças, interage com os coletores. “As crianças são as melhores coisas da vida. Todas elas acenam pra gente, nos respeitam”, diz o coletor Sílvio do Rego.

Sandro e o cansaço

Silvio foi carinhosamente apelidado de “Ramirez”, por se parecer muito com o ex-jogador de futebol do Cruzeiro. Hoje ele joga no Chelsea, na Inglaterra. Até pouco tempo, o nosso “Ramirez” trabalhava na construção civil. No começo do ano ficou desempregado. Mas logo carimbou sua carteira, desta vez na Seleta. Lá, para garantir a vaga, não se exige nenhuma formação acadêmica, basta força de vontade. “Nunca pensei em trabalhar como lixeiro. Mas é uma profissão digna como qualquer outra. Já me acostumei”, disse. Como sempre tentou ser jogador de futebol, tem um preparo físico invejável. Correr nem cansa mais. E olha que o cara corre mais de 15 quilômetros por noite. Parada apenas para a janta, lá pelas dez.

O inimigo

Atuando numa profissão considerada a mais baixa da escala econômica brasileira, é difícil apontar uma pessoa que tenha coragem de encarar a jornada. Por isso são heróis. Mesmo assim, os habitantes da cidade continuam a jogar vidro no meio do lixo, dificultando ainda mais a vida dos coletores. Mesmo usando luvas de proteção, os cacos são armadilha constante. “O pessoal poderia se conscientizar mais. Basta colocar o vidro separado, numa caixa de papelão”, lembra Silvio. De cada dez sacos de lixo, pelo menos um tem caco. Dados indicam que nas segundas-feiras – quando o lixo se acumula nas residências por causa do domingo – os resíduos recolhidos em toda a cidade beiram as 100 toneladas.
E a sacanagem não pára. Até animais mortos a população coloca nas lixeiras. Dias desses, Manoel apanhou uma caixa de papelão bastante pesada. Como não tem tempo de olhar seu interior, a arremessou para a prensa do caminhão. Ele só escutou o estouro. Era um cachorro morto, um pastor alemão, que acabara de ser moído. “Os restos dele explodiram em todo o caminhão. Foi a coisa mais nojenta que vi na vida. Fiquei sem comer por alguns dias”, lembra. Mas se existem espinhos, também existem flores. Manoel já encontrou R$500 no lixo.


Preconceito e ignorância

Parte da população desconhece a árdua missão dos coletores. Afinal, é fácil embalar o lixo num saco plástico e depois, simplesmente, colocá-lo na calçada, fora de casa. As mãos permanecem limpas. “O lixeiro que se vire agora”, pensam alguns. Fácil para os imortais. Difícil para os homens. Mal sabe a população que, de saco em saco, o cheiro podre vai aumentando. A roupa dos coletores, ao final do trabalho, se transforma em parte de uma das sacolas. Quase tudo fica desumano. Principalmente, quando a ignorância e o preconceito aparecem. Muitas são as histórias de intolerância narradas pelo pessoal.

Sandro Carvalho de Freitas, aos 19 anos de idade, é um novato na profissão. Até pouco tempo trabalhava ao lado do pai como técnico em refrigeração. Mas decidiu proclamar sua liberdade registrando sua carteira pela primeira vez, agora como coletor. “Minha mãe me viu sobre o caminhão e disse que sentiu vergonha”, afirmou. Constrangido, ele ainda disse que, quando o visse novamente, ela não precisaria cumprimentá-lo. “Sei que no fundo ela estava brincando. Mas isso mostra o que as pessoas pensam”.

“Às vezes tenho que entrar em algum lugar público. Me sinto como um animal frente aos olhares das pessoas. Não é legal. É preconceito mesmo”, diz Manoel. Para ele, o que falta é lembrar que, por debaixo da farda dos coletores, existe a figura humana, de um trabalhador como outro qualquer. Falta a lembrança de que a turma da coleta está realizando a parte suja de toda a comunidade. Vocês sujaram. Nós limpamos. Agradecido “seo dotô”.

Os tarados e outras histórias do Cine Plaza


Foto dos proprietários do Cine Plaza

DilmércioDaleffe

Fechado definitivamente em maio de 94, o antigo Cine Plaza não deixou apenas as lembranças de uma época de ouro. Ficaram também os rastros de histórias e estórias, ainda contadas por pessoas que vivenciaram a sua tela. Brigas, paqueras e até tarados. Enfim, fatos que o tempo jamais apagará.Na verdade, trata-se de um prédio,o qual por três décadas,colaborou na consolidação da cultura da cidade. O Cine Plaza, inaugurado em 64, possuía 1,6 mil lugares. Passou por um incêndio em 66, mas foi reformado. Hoje, depois de extinto, deu lugar a uma igreja. Sorte que as paredes não falam.

Aos 52 anos, Neuza Machado se lembra da época que trabalhava na bilheteria do antigo cinema. Foram 12 anos no local e muitas histórias por contar. Ela lembra que diariamente, a última sessão era destinada ao público adulto. Numa única vez, após a reprodução do filme pornô, um casal foi contratado para desenvolver sexo explícito, tudo ao vivo. Foi uma atração sem igual, disse. Naquele dia, Neuza foi com a irmã dar uma espionada. Ficaram de pé num cantinho, encostadas na parede. Mas de repente, eis que surge um tarado e agarra a irmã por trás. “Gritamos tanto que o homem foi tirado na hora.Segundo ela, enquanto os atores faziam o show, muitas pessoas, não acreditando no que viam, subiram ao palco para verificar de perto o inimaginável. “Subiu muita gente. Tanto é que o show acabou”, disse ela.

Neuza também lembra quando teve que trabalhar de lanterninha – função a qual o objetivo é identificar os arruaceiros durante a escuridão do cinema. Numa dessas vezes, ela observou que um indivíduo se mexia muito na poltrona. Quando virou a lanterna até ele, o homem já estava com a “lanterna” pra fora. “O dono do cinema não conseguia contratar um lanterninha. Então, depois que fechávamos a bilheteria, eu fazia esta função. Confesso que não gostei”, disse.


Neusa e as recordações

Engraçado foi a vez que um homem adentrou as roletas do Cine Plaza com um dos primeiros travestis da cidade. Neuza estava na bilheteria com outra funcionária. As duas chegaram a apostar que o cidadão não permaneceria na poltrona depois que descobrisse o inusitado. E assim aconteceu. Depois de 15 minutos, o homem saiu em disparada. Não olhou para os lados e, muito menos para trás. Também não foi mais visto no cinema. Foi cômico para elas. Trágico para o rapaz.

As paqueras também ocorriam fora do prédio. Na década de 70, por exemplo, os boyzinhos da cidade desfilavam seus Mavericks envenenados em frente ao Cine Plaza. Jorair Fernandes de Moraes viveu o momento. Hoje, morando em Cuiabá, ele se recorda que era ali, na Rua Brasil, onde a moçada se reunia, principalmente, nas tardes de domingo. “O point era ali. E não havia violência. Ninguém brigava, não jogavam garrafas na rua e não se vias armas nas mãos de ninguém. Era mesmo uma época de ouro”, lembra.

Não querendo ser identificado, Eusébio – nome fictício de um morador de Campo Mourão – ainda se lembra da vez que foi ao Cine Plaza com um de seus amigos. Ainda moleques, foram atrás das paqueras. Cada um sentou-se ao lado de uma moça. E deu certo. Depois de beijos e abraços decidiram sair do cinema de mãos dadas com as “namoradinhas”. Lá fora, já no clarão das luzes, ele notou quesua “futura mulher” usava um Kixute (antigo tênis preto masculino, quase todo em borracha, com travas para jogar bola). Não bastasse a cena de repúdio do conquistador, os cadarços ainda estavam amarrados na canela da moça. “Aquilo pra mim foi um broxante. Larguei a mão dela na hora e nunca mais a vi”, diz. Ele lembra que antigamente as poltronas do Cine Plaza eram cenário de conquista. Mesmo que isso trouxesse um pouco de surpresas mais tarde.

Neuza não confirmou, mas alguns antigos freqüentadores se lembram das peripécias de um verdadeiro artista do escuro. Assim que as luzes se apagavam, durante as sessões pornôs, o indivíduo tirava o membro para fora e se dirigia a uma fileira de cadeiras. Entre as poltronas, andava rapidinho, de costas aos que estavam sentados e, ao mesmo tempo, esfregando a sua “lanterna”, na cabeça e pescoço dos que estavam sentados a sua frente. Já no final da fileira, depois de uma esfregação contínua, o último era torturado. Imagine só a cena.

Ronivon Rodrigues, hoje aos 44 anos, mantém boas recordações do tempo em que trabalhou no Cine Plaza. Primeiro atuou pintando cartazes de filmes. Sim, naquela época, os cartazes para chamar a atenção do público eram pintados. Parte do sucesso de bilheteria se dava a criatividade dos pintores. Depois, Roni foi promovido para projetar filmes. Nos dez anos em que permaneceu no local, a máquina era a carvão. “Também presenciei cenas estranhas”, disse. Certa vez flagrou um homem de quase dois metros de altura com as partes de fora, atrás das cortinas. “Tivemos que tirá-lo do local”, afirmou. Apaixonado pela sétima arte, Roni tem muitas saudades daquele tempo. “Eu lembro que o filme “Stalone Cobra” recebeu mais de 50 mil pessoas. Foram mais de 30 dias com a sala lotada”, afirma. Parte dos cartazes pintados naquela época ainda existe. Ele os guardou na casa de seu filho, em Santa Catarina.

Como tudo teve início

De família tradicional e pioneira na cidade, o empresário Getúlio Ferrari apostou e construiu na década de 60, uma das maiores e modernas salas de exibição cinematográfica do país: o Cine Plaza.Com capacidade para 1650 pessoas sentadas, o cine serviu para grandes exibições. Na época, filmes chegavam a ficar mais de 30 dias em cartaze com várias sessões com lotação de até 1800 pessoas. Dois anos após sua inauguração, houve um grande incêndio que destruiu totalmente o cinema. Ele foi reconstruído em apenas quatro meses.

De acordo com Arno Ferrari, filho do saudoso Getúlio, o Cine Plaza também serviu para abrigar grandes shows, formaturas e as assembléias gerais da Coamo. “A Viação Mourãoense, por exemplo, chegava a colocar mais de dez ônibus no domingo à noite, na saída da sessão das 20h. Tudo para transportar o grande número de espectadores que vinham à sessão”, lembrou Arno. Segundo ele, naquele tempo, o prédio foi por muitos anos a única fonte de entretenimento na cidade.

Outra lembrança. Nas sessões de matine era comum a troca de gibis pelas crianças que freqüentavam o cinema. Um gibi novo equivalia a vários usados. Algumas crianças traziam mais de 20 gibis para serem cambiados entre os freqüentadores. Foi também nestas ocasiões, quando alguns pais iam ao cinema, no domingo a tarde, e solicitavam ao lanterninha que os ajudassem a procurar as filhas. “Eles queriam ver se elas não estavam namorando ao invés de assistir ao filme”, comentou. Em alguns casos, chegavam até mesmo retirar as filhas na base do safanão, quando as flagravam com os namoradinhos.

Na década de 80 houve a imposição do Concine -Conselho Nacional de Cinema que atuou como gestor do cinema nacional - para que fosse exibido um limite mínimo de filmes nacionais. Como os grandes filmes (Mazaropi, Xuxa e Trapalhões) eram lançados esporadicamente, existia a necessidade de passar os filmes chamados de pornochanchada (mistura de pornô com palhaçada). Isso era feito na sessão das 22h. O público se resumia em grande parte a viajantes, homens solteiros e algumas personalidades da terceira idade.

No entanto, com o surgimento do vídeo cassete, do acesso fácil a televisão aberta e da liberação dos costumes, a freqüência de público nas sessões começou a declinar,culminando com o fechamento do cinema no dia 15 de maio de 1994, com o filme “O Anjo Malvado”. O prédio então deu lugar a uma igreja. Este foi o adeus do famoso Cine Plaza.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O Indiana Jones de Corumbataí do Sul


Dilmércio Daleffe

Florisvaldo Rodrigues da Silva, mais conhecido como “Nenzão”, mora há 35 anos na pequena comunidade da “Água do Juca”, zona rural de Corumbataí do Sul. Hoje, aos 61 anos de idade, pode ser considerado como um verdadeiro “Indiana Jones” – personagem antológico do cinema que descobre tesouros e antiguidades. Afinal de contas, ele vive em um local místico, cercado pela história do Caminho do Peabiru e de resquícios indígenas que começam a ser descobertos em estradas e rios. Este é o caso da Pedra do Índio, uma grande rocha localizada às margens de um córrego da região, cujas formas ali riscadas intrigam a imaginação dos poucos que a viram.

“Nenzão” herdou o apelido dos pais, ainda criança. Ele nasceu na década de 50, na pobre cidade de Aracatu, interior da Bahia. Vendo o solo estéril e um clima igual ao deserto, os pais deixaram a angústia e os 20 alqueires de terra e rumaram num caminhão pau de arara com destino a São Paulo. Eram quase 50 pessoas amontoadas sobre a carroceria para percorrerem, juntos, cerca de mil quilômetros. “Somente da minha família eram 13 pessoas. Naquela viagem perdi a unha do dedão do pé, de tanta coisa que viajava sobre a gente”, lembra.


De São Paulo vieram ao Paraná e, depois, até Corumbataí do Sul. Uma vez instalado na região, “Nenzão” virou homem do campo e, como conseqüência, tornou-se um legítimo paranaense. “Aqui é o melhor lugar do mundo”, afirma o ex-baiano. Trabalhando na “roça”, passou a descobrir as relíquias cravadas sob a terra. Primeiro encontrou uma ferramenta – um tipo de martelo - utilizada pelos indígenas para corte. Outra vez, observou uma estrutura arredondada em uma recente estrada aberta na região. Tratava-se de uma cerâmica pesada, esculpida e com buraco em uma das extremidades. Segundo ele, a peça era usada para a alimentação dos indígenas.

Com o tempo, outros objetos foram descobertos. Muitos foram doados a colecionadores. Mas uma boa quantidade ainda se encontra com “Nenzão”. Ele conta que moradores locais têm medo de encostar em antiguidades porque acreditam se tratar de “pedras de raios”. Ou seja, raios que caíram e acabaram esculpindo as rochas. “Diz que depois de sete anos alguém vem pegar as pedras”, afirma. O achado mais importante da região ainda é um mistério a ser desvendado. Sob a mata fechada, às margens de um pequeno córrego, há dezenas de anos, encontra-se a Pedra do Índio, uma rocha com circunferências cravadas a mão. Nem mesmo ele arrisca dizer o que ela significa. “Não sei dizer para que servia. Mas que é curioso, isso não tenho dúvidas”, diz.

Aposentado, “Nenzão”, hoje também ganha a vida na lavoura e com um pequeno rebanho. Possui um velho armazém onde comercializa cerveja, tubaína, pinga, doces e gás. No local, ainda encontra-se a reluzente figura do antigo lampião. Trata-se de um ambiente bucólico, onde seus objetos remetem os clientes ao passado. Uma geladeira vermelha, da década de 70, e que funciona. Uma Tv pré-histórica, sem uso. Cartazes políticos de candidatos de Campo Mourão nas paredes. Uma grande presa de porco pendurada, uma mesa de sinuca e diversas engenhocas utilizadas na agricultura. E é ali, atrás de um balcão rústico feito com madeira da região, onde ele passa a maior parte do seu tempo, contando histórias, como o bom Indiana Jones do cinema.

Antiguidades no Caminho do Peabiru




Todos os achados de “Nenzão” se localizam no trecho conhecido como Caminho do Peabiru. Por estes dois aspectos, a região acabou se tornando bastante mística. Se não bastassem as descobertas de vestígios indígenas, um grupo criou a Rota da Fé, uma peregrinação religiosa. Em todo o trecho que liga a comunidade da “Água do Juca” até Campo Mourão – cerca de 30 quilômetros – foram construídos imagens de santos e colocadas pedras com inscrições e mapas, aumentando ainda mais o misticismo do local. A idéia, no futuro, é que o trajeto se transforme num caminho religioso, algo semelhante ao que é hoje o caminho de Santiago Compostela, na Espanha. “Nenzão” também informou que, há muitos anos, quando aquela região ainda mantinha suas reservas florestais intactas, ele próprio vivenciou fatos inexplicáveis. “Às vezes via feixes de luz incidindo à noite sobre a mata. Em segundos, aquela luz desaparecia. Assim como eu, muita gente viu também”, afirma.

A Vida na Linha do Trem

Durante todo o ano de 1995, Dilmércio Daleffe percorreu quase 50 quilômetros de trilhos em Ponta Grossa. Tentando registrar o cotidiano das pessoas que moram à beira da ferrovia - dentro da cidade - ele flagrou momentos que, até agora, jamais havia divulgado. Trata-se de um trabalho fotográfico em Preto e Branco o qual reuniu cerca de 1,5 mil clics - ainda na época das máquinas analógicas, quando não se sabia ao certo se a luminosidade e o enquadramento estavam corretos.