Renato era um cara como tantos
outros até pouco tempo. Namorava, trabalhava e vivia intensamente todos os dias
de sua vida. Mas há quase um ano, levou um tiro no pescoço. Ficou 11 meses
internado entre a vida e a morte. Depois, descobriu ter ficado tetraplégico.
Saiu do hospital esta semana. Mas antes, casou-se com a mulher que ama, Fernanda.
A cerimônia aconteceu entre os aparelhos e camas do Hospital Cajuru, de
Curitiba. Renato e Fernanda estão voltando pra casa.
Dilmércio
Daleffe
Fernanda
e Renato se conhecem há seis anos. Da amizade brotou a paixão. Ela,
trabalhadora de uma gráfica. Ele, operário da construção civil. Tinham uma vida
simples, longe de regalias e do luxo das famílias poderosas. Pobres, e sem
recursos, construíram sua casa aos fundos do lote dos pais dele. Um lar sem
tijolos. Apenas com paredes de compensados. Mas no seu interior, um teto feito
à base da honestidade e da sinceridade de um grande amor. Mas há 11 meses, a
vida parou. No dia 5 de outubro de 2012, numa ação inexplicável, um homem
drogado atirou contra Renato. O disparo no pescoço o deixou tetraplégico. A
partir daí, tudo mudou, com exceção da paixão e do amor.
Fernanda
Nalon, aos 20 anos de idade, é obcecada pelo companheiro. Tinha apenas 14
quando uma paixão avassaladora a uniu com Renato. Destinos cruzados, vidas
passadas, seja lá o que tenha sido, foi forte demais. Renato Tarachuk tem hoje
27 anos. Sempre foi pobre, mas honesto. Desde que ajoelhou-se a ela, sabia que
o futuro seria ao seu lado. E foi desta maneira, que numa tarde de domingo, no
município de Bituruna – Sul do Paraná – os dois saíram juntos para ir até a
chácara de um amigo. Estavam namorando, rindo, se distraindo, quando aquele
homem drogado atravessou seus caminhos. Armado, apontou o revólver e, sem mais
nem menos, numa grande infelicidade, disparou contra o pescoço de Renato. Após
ser atingido, ainda saiu do carro e caminhou por alguns metros. Mas naquele
instante, a vida tomaria um rumo jamais imaginado.
Em estado
grave, Renato conseguiu uma vaga na UTI do Hospital Cajuru, da Pontifícia
Universidade Católica, de Curitiba. Lá permaneceu sob os cuidados de uma equipe
médica dedicada, contradizendo hoje, o que parte da população brasileira
condena sobre médicos sem instrução, mercenários ou até, sem caráter
humanitário. Foram 11 meses numa batalha entre a vida e a morte, com inúmeras
paradas cardíacas. Vivendo entre a esperança e a dúvida, entre as lágrimas de
dor, e de felicidade. Mas na guerra fria da vida, sobrou e prevaleceu o amor.
Quase um
ano dentro do hospital, Fernanda viajou poucas vezes à sua casa. Abriu mão de
sua vida particular para permanecer ao lado do cara que amava. Naqueles
corredores sem fim, não conseguiu enumerar suas orações. Enquanto rezava,
Renato batalhava pela própria vida. Foi um guerreiro por si só, como dizem os
médicos. “Somos muito apegados a Deus. Não fosse ele, Renato não estaria vivo”,
acredita Fernanda.
Mas
diante de tanto sofrimento, e do dia em que ouviu as duras e frias palavras de
que não mais andaria, Renato se revoltou. Ele não consegue perdoar aquele
sujeito que disparou o gatilho. Renato é mais uma vítima da violência urbana.
Foi mais uma estatística das atrocidades cometidas num país sem leis severas,
não respeitadas, não cumpridas. “Queria que aquele homem estivesse no meu
lugar, passando por tudo o que estou vivendo. Ele acabou com minha vida”,
afirmou.
Um
casamento no hospital
Depois de
11 meses internado, Renato teve alta esta semana. Ele está feliz demais. Afinal,
nos últimos dias conseguiu sua aposentadoria, teve alta médica e, ainda, casou-se
dentro do próprio hospital. A coisa foi mais ou menos assim: sensibilizados com
a paixão do casal, a família de outro interno mobilizou médicos e enfermeiros
para a cerimônia. Então de uma “vaquinha” surgiram as alianças, a festa, o
vestido de noiva, o terno, o salão. As enfermeiras ainda organizaram o chá de
panela, também no hospital. Um pastor fez a cerimônia. Teve padrinhos, festa
animada, salgadinhos e muita emoção.
“Foi tudo
o que queríamos. Não tínhamos condições, e recebemos de coração. Agora voltamos
a nossa casa, casados”, disse Fernanda. A equipe médica também participou da
cerimônia. Afinal, o casal transformou o hospital em sua segunda casa, ficando
a relação médico paciente quase familiar.
Um dos
profissionais mais próximos de Renato foi o médico intensivista Juliano
Gasparetto. “Há mais ou menos um ano o Renatão ensinou a toda equipe o
significado da palavra superação. Após lutar contra o que seria considerado
impossível para muitos, ele teve que reaprender a respirar novamente, e
conseguiu”, disse. Gasparetto lembra que foi alvo de muitas brigas com o paciente,
principalmente, no início. “Imagine a sua revolta depois de saber que não iria
mais andar. E a primeira pessoa a vê-lo todos os dias era eu. Então era eu quem
ouvia sua indignação”, lembra. Numa metodologia de humanização, o casal
participava de todas as decisões do tratamento. “Eles opinavam e interagiam o
tempo todo. Inclusive, a família ficava na UTI. Participavam de tudo”, explica
o médico.
Renato
acaba de deixar o Cajuru. Devido ao ferimento da bala, terá que viver com
traqueostomia. Para melhorar sua qualidade de vida, ganhou um respirador, que o
acompanhará onde for. Segundo ele, mesmo brigando inúmeras vezes com o
intensivista, Gasparetto está além de um simples médico. “É um anjo da guarda
que carregarei comigo pro resto da vida. Me ajudou em todas as decisões. É um
grande profissional. Um grande médico. Um amigo”, disse.
Por fim,
Fernanda e Renato agora retornam à sua casa. Saúde é o que todos desejam. Na
casinha simples de compensados, lá permanecerão. Juliano Gasparetto continuará
sua jornada diária entre lençóis, aparelhos e pacientes sobre as camas de
hospital. Enquanto isso, na cadeia de Guarapuava, repousa o indivíduo que
ocasionou toda esta história. Apenas mais uma vítima do comércio de drogas. Um
usuário em potencial. Um reflexo do desleixo e descaso da violência urbana das
cidades brasileiras. Em pouco tempo, ele estará nas ruas novamente. E quantos
Renatos ainda pagarão por um país sem leis mais severas?
O
desabafo de um médico
“Após
inúmeras paradas cardíacas por disautonomia, um desmame ventilatório que gerava
discussões e "brigas" entre eu e o Renato, meus residentes e meus
amigos da fisioterapia, sempre comigo "rabugenteando" é claro, dias,
noites e fins de semana o tratando, hoje mais uma lição e duas palavras simples:
amor e um muito obrigado dito pelo Renato e pela Fernanda, foram o suficiente
para que eu repensasse vários dos meus conceitos e o motivo pelo qual saímos de
casa todos os dias para trabalhar. Superação e muito amor pelo que faz; porque
temos o treinamento para fazer o que ninguém faz - devolvemos as pessoas que já
estiveram entre a vida e a morte para suas vidas, para serem felizes.
Não há medicina,
não há o menor sentido no que fazemos, se a palavra humanização não for a regra
número um. Apesar de sermos uma unidade de trauma e termos tratado vários
pacientes com trauma raquimedular, o Renato, pra mim, é especial.
Depois de a mídia tentar jogar a Medicina Intensiva na lama com a
sensacionalista história do Hospital Evangélico, hoje tivemos a oportunidade de
mostrar o outro lado do que nós fazemos no dia-a-dia. Não foi na rede privada,
Einstein ou no Sírio, foi no SUS mesmo; o mesmo SUS que o Governo tenta dizer
que os médicos brasileiros não querem trabalhar. Parabéns a todos os
profissionais do time do Hospital Universitário Cajuru e ao ator principal
desta linda história, o Renato”.