Aos 77 anos, Sebastiana Benedita Caetano vive só, numa modesta casa no Jardim Horizonte, periferia de Campo Mourão. Procura viver o presente e esquecer-se de um passado de angústias e sofrimentos. Na década de 60, a filha de 5 anos foi estuprada e morta pelo próprio pai e marido. Ele foi preso, condenado e depois desapareceu. Ela reza pra que continue assim.
Dilmércio Daleffe
Campo Mourão ainda vivia o início da década de 60 quando Sebastiana Benedita Caetano já trabalhava como doméstica. Num dia como tantos outros, ela retornou à sua casa, hoje Jardim Horizonte. Cansada da jornada, voltou devagar, passos lentos sob um céu cinzento, andando pelas ruas de terra a pensar na vida. Ao adentrar a casa humilde, de madeira sem tinta, viu uma cena de terror, que mudaria sua história. Avistou a pequena filha de cinco anos agonizando num dos cantos. Ela sangrava, chorava, não estava bem. Noutro canto estava o marido, João, bêbado, despreocupado com o estado da filha, que dizia não se importar. A menina inocente chamava-se Ivonaique e acabara de ser violentamente estuprada pelo próprio pai.
“Bastiana” largou o que carregava e pegou a filha. No colo, a carregou até o hospital. A entregou a um dos médicos e em seguida, deslocou-se até a polícia. Lá, descreveu a cena descomunal. Tentou imaginar a barbárie cometida pelo carrasco, João. Entre raiva e lágrimas, sobrou a sede por justiça. Os policiais rumaram imediatamente até a casa e prenderam o estuprador. Ao sair da delegacia, “Bastiana” voltou ao hospital. Ela queria cuidar da filha e, assim, tentar amenizar a dor. Queria estar ao seu lado, permanecer calada, apenas dar conforto. Mas todo o desejo da mãe foi logo massacrado. A menina já estava morta. Não suportou o ferimento ocasionado pelo homem. A pequena Ivonaique morreu horas depois. Morreu sem saber pra quê servia a figura de pai.
Conta “Bastiana” que João foi levado pela polícia no mesmo dia. Nunca mais o viu. Soube que havia sido condenado a 18 anos de cadeia. Permaneceu nove anos detido em Campo Mourão. Ficou outros nove em Curitiba. Quando foi levado a capital, teria ido junto a um bandido conhecido, o tal “Zé Cascavel”. Por coincidência, os dois eram amigos. “Nunca mais quis saber dele. Torço pra que tenha morrido. Aquela menina era a minha companhia. Ainda rezo pra ela”, disse.
Hoje, aos 77 anos, “Bastiana” vive só. Mas antes só do que mal acompanhada, diz o ditado. Ela recorda, ainda emocionada, o drama vivido ao lado do marido. Ela trabalhava, enquanto ele bebia. Ela quem levava o dinheiro pra casa, mas era ele quem o tomava, literalmente. Apanhou calada por anos e anos. Escutava agressões verbais e sentia na pele a força das mãos do carrasco. As humilhações eram constantes, chegando ao ponto de ser impedida até mesmo de freqüentar a igreja. “Ele tinha ciúmes do padre”, disse. Determinada vez, apanhou com uma faca. Para se defender, quase teve um dos dedos decepados. Embora vivesse uma tortura constante, não tinha coragem em denunciá-lo. Ele a ameaçava de morte. “Dizia que se eu fosse embora ia me matar”, afirmou. Definitivamente, a vida estava de costas pra “Bastiana”.
A mulher de 77 anos ainda é forte. De todos os possíveis problemas de saúde, possui apenas dores nas costas e olhe lá. Vai viver muito. Conta ela que suas raízes estavam fixadas em Getulina, interior do estado de São Paulo. Nasceu de uma família de negros. Eram dez irmãos. Acredita que apenas um deles tenha morrido. Na década de 50 veio para Campo Mourão com o marido. Chegou aos 23 anos e aqui teve oito filhos. Atualmente apenas uma filha está viva. “Bastiana” ficou 14 anos sem vê-la, mas a reencontrou em 2008, através de um programa de televisão.
“Bastiana” tem olhos grandes e um olhar marcante. Tem orgulho da sua cor e de sua força de vontade. Trabalhou durante muitos anos como doméstica. Passou outros tantos no corte de cana. E foi com esse trabalho quando conseguiu juntar dinheiro e comprar sua pequena casa. Com a morte dos filhos, e a cadeia do marido, passou a viver só. Hoje, já aposentada, tem dinheiro suficiente para manter-se. Como não consegue ficar parada, ainda recolhe latinhas pelas ruas da cidade. Fatura entre R$40 e R$50 ao mês. “As latinhas já pagam algumas continhas”, diz.
Religiosa, mantém uma vela acesa na cômoda do quarto, ao lado da imensa cama de casal. Muitos santos estão presentes sobre o móvel, em especial, Nossa Senhora Aparecida. Sempre vai à igreja e já faz parte de um grupo de orações. “Tenho muita fé em Deus. Depois que passei a acreditar nele, minha vida melhorou”, garante. Nunca aprendeu a ler e escrever. O analfabetismo se deve ao pai, quem sempre a proibiu de estudar. “Dizia ele que mulheres não tinham que estudar. Somente os homens”, lembra. Hoje, ela depende de vizinhos para entender documentos.
A casa própria, em alvenaria, é bastante modesta. Um quarto, uma cozinha, o banheiro e uma varanda. Na verdade é uma meia água, ainda sem tinta, mas que representa cada gota de suor derramada nos canaviais. Para cozinhar cultua o velho e bom fogão a lenha. Tem madeira de sobra pra queimar. O arroz e feijão sai com outro gosto. O sabor da vida gostosa. Também na varanda, uma mangueira faz a sombra pros finais de tarde. É lá, numa cadeira confortável que ela vai vendo a vida passar, sozinha, mas longe da solidão. Tem muitos amigos pela vizinhança. Visitas são freqüentes. Numa prosa longa ou curta, vai esquecendo que mora só. A Tv é outra quem a distrai. Vê novelas, programas locais e alguns filmes.
Mas aos 77 anos, acredita já ter vivido de tudo um pouco. Aprendeu não gostar de emprestar dinheiro. Já fez algumas vezes, mas pra receber sempre é difícil, diz ela. Como crítica social, pede ao município que cuide mais do cemitério. “Dias desses morreu uma amiga e fui ao enterro. Nunca vi um cemitério tão sujo e mal cuidado. Quando eu morrer não quero ficar no meio da quiçaça”, disse. Assim dona “Bastiana” segue seu destino, distante dos filhos mortos e do marido desaparecido. Apesar da vida sofrida, principalmente devido às perdas, não é uma mulher angustiada, triste. “Aguardo somente a vontade de Deus. Quando ele quiser, virá me buscar”.
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