segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Santo, o pescador de solidão


Dilmércio Daleffe

De santo, Santo nada tem. Ele é somente um cara normal, cujas surpresas da vida vão se revelando nas curvas do destino. A diferença entre ele e os demais homens está no cotidiano. Enquanto a maior parte dos seres acorda em meio à cidade, com buzinas e barulho de carros, Santo levanta e vê uma paisagem bela e deslumbrante: o lago da Usina Mourão. Todo dia a cena é a mesma. Talvez seja por este motivo que acredita chegar aos cem anos. Decidiu viver assim, sozinho, desde que a esposa morreu. Santo é um pescador de solidão.

Santo Pacanhela Filho está com 63 anos. Descendente de espanhóis, ele acorda cedo. Lá pelas cinco da manhã acende o fogão a lenha pra iniciar o ritual do café e o tempero do feijão. Mora numa casinha modesta, de madeira, com duas peças, às margens do lago da usina. Vive só há cinco anos, desde que recebeu o convite para residir ali. Viúvo há 11 anos, não tinha nada mais a fazer na cidade. Foi então que aceitou morar em meio ao mato. Santo é um cara do bem. Vive bem humorado. Não leva problemas pra casa. Mas onde encontrá-los naquele local?

Santo fez o caminho inverso da modernidade. Enquanto as pessoas estão migrando da zona rural à urbana, ele abandonou à cidade e se embrenhou nos capões de mato. Deixou pra trás o barulho das máquinas e passou a absorver o ruído do lago, o canto dos pássaros, a brisa do vento. Santo está feliz. Não quer mais sair do local. “Quero morrer aqui”, disse. Mas quando fala da esposa morta em 2001, a emoção aflora. Ele tem saudades da companheira, Maria, morta aos 45 anos de idade.

Conta Santo que seus pais vieram do interior do estado de São Paulo, Pirassununga. Foram até Iretama e, anos mais tarde chegaram a Campo Mourão. O pai sempre foi da agricultura. Num dia fatídico, morreu pisoteado por uma vaca. Santo teve sete filhos. Trabalhou no campo e depois na cidade como sapateiro e saqueiro. Há alguns anos sofreu um acidente na estrada. Quase perdeu uma das pernas. Desde então aposentou-se por invalidez. Vez em quando recebe a visita dos filhos. Mas na maior parte do tempo vive só, pescando solidão.

Logo pela manhã, Santo deixa a casa e sai em busca de seus peixes. É lá, na beira do lago quando enxerga o verdadeiro valor da vida. Durante várias horas, sem ninguém atrapalhar, passa o tempo a pescar. Entre preparar a isca no anzol e a incrível sensação de fisgar o bicho, vai divagando seu destino. Ele não deve a ninguém. Não tem problemas. Consome as horas com prazer. Santo nada tem de santo. Tem apenas solidão. Mas isso não é nada pra quem tem quase tudo.

Em busca da paz, os Kiwel sobreviveram


Dilmércio Daleffe

Atanásio e Janina Kiwel nasceram um para o outro, ainda na década de 20. Foram criados na Polônia em tempos de conflitos e, mesmo assim, conseguiram se casar. Mas, três dias depois do matrimônio, ainda em 1942, transformaram-se em prisioneiros de guerra. Estavam em meio à Segunda Guerra Mundial. Levados para trabalhar forçadamente na zona rural da Alemanha, presenciaram cenas de terror jamais esquecidas. Hoje, Atanásio está com 89 anos. Janina morreu há sete, vítima de câncer. Os relatos a seguir, definitivamente, não foram fáceis de serem contados. As lembranças remetem a um passado de pesadelos, torturas, fome e angústias. Revelam a resistência humana diante de barbáries. Identificam as atrocidades de uma raça que se auto mutila, que não se preserva, não se respeita. Depois de sobreviverem aos horrores da guerra, os Kiwel chegaram a Campo Mourão e, aqui, descobriram a paz.

Pesadelos
Na verdade, a Segunda Guerra Mundial foi encerrada em 27 de maio de 1945. Mas 67 anos depois, ela ainda não foi extinta da memória de quem a viveu. Atanásio prefere nem mais falar sobre isso. São histórias que ainda machucam. Cicatrizes abertas diante da dor. O destino do casal teve início na década de 40. Depois de se casarem, foram separados e obrigados a trabalhar como escravos em campos de concentração nazistas. Próximo a Berlim, o casal ficou na zona rural. Trabalhavam dia e noite, numa jornada desumana. Janina já estava grávida e depois de cinco meses foi transferida a um hospital-prisão, principalmente, em função da rejeição militar por filhos estrangeiros. Em março de 1944, depois do nascimento do primeiro filho, Jorge, Janina evitou que a criança fosse morta por envenenamento de mamadeira. Tratava-se de uma prática comum naquela época: nazistas executando recém nascidos.


Fuga
Mas Janina era uma leoa. Fez malabarismos para esconder o filho. Muitas vezes o escondia debaixo do próprio colchão. Meses depois, o hospital-prisão em que estava foi bombardeado e acabou desmoronando. Foi removida a outra prisão, mas conseguiu fugir levando o filho. Acompanhada de outra mulher e, ainda, com a ajuda de anônimos, viajou parte do percurso de trem. Outros 26 quilômetros fez a pé, sem se alimentar, até chegar a colônia onde o companheiro estava preso. De acordo com Atanásio, Janina enfrentou muitos ataques até chegar ao seu encontro. “Numa das bombas lançadas ela e o bebê foram soterradas”, disse.

Último sobrevivente
Atanásio é um sobrevivente da guerra e do tempo. Ao lado dos filhos, ele é, possivelmente, o último de seus descendentes a estar vivo. Segundo relatos, toda a sua família polonesa foi morta na Guerra. O casal veio ao Brasil em 49, junto com outros dois mil foragidos de guerra enviados pela Cruz Vermelha. Polonês, ele chegou a Campo Mourão nos primeiros dias de 1950, ao lado do filho Jorge e de Janina. Aqui, o casal trabalhou como colono, garantindo o primeiro emprego na Fazenda de Pedro Parigot. Lembra ele que se tratava de um país estranho, com costumes diferentes, além de ter outra língua. Foi um recomeçar tão difícil quanto o medo de uma nova guerra.

Operário
Anos depois trabalhou como operário em grandes construções, como na Usina Mourão e do Hotel Santa Maria. Já habituados com a poeira vermelha da região, os Kiwel tiveram o segundo filho, Antônio, cinco netos, além de outros cinco bisnetos. Mesmo sem gostar de relembrar o período de conflito, Atanásio recorda o sofrimento da alimentação quando ainda era prisioneiro de guerra. A condição se resumia em comida ruim, de péssima qualidade. Por este motivo passou muita fome. Ao mesmo tempo testemunhou milhares de pessoas morrerem por inanição. “Eram 100 gramas de pão de manhã, beterraba com casca de batatinha com terra e tudo, em sopa no almoço e janta”, recorda. A “suntuosa ceia” era servida num campo de concentração onde mais de cinco mil pessoas se amontoavam. Muitos debilitados e, aos poucos, morrendo por falta de alimentação. “Aqueles que ainda tinham condições de andar, eram obrigados a cavar suas próprias covas. Valetas para a própria morte. Em frente aos buracos, eram metralhados. "Vi muito sangue correr naquela colônia”, revela Kiwel.

Hoje
Atualmente, Atanásio continua a residir em Campo Mourão. Aqui criou seus dois filhos e diz ter se tornado um dos maiores adoradores desta terra. Sempre trabalhou como operário da construção, mais especificamente, como carpinteiro. Jorge, o filho mais velho, nasceu em 42 na cidade de Waltorp, na Alemanha, e chegou ao Brasil ainda aos cinco anos. Pouco se recorda daquele tempo de guerra. Em Campo Mourão criou sua família e tornou-se agricultor. É um cara boa gente, de bem com a vida. Um sarrista. Antônio, o filho mais novo, aposentou-se no ramo da telefonia. Hoje também possui uma pequena propriedade. Trata-se de um gentleman, sempre zelozo com o velho pai. Juntos, os três continuam o destino dos Kiwel vivendo o presente e buscando esquecer um passado angustiante. A família sobreviveu à guerra e escolheu Campo Mourão para continuar sua saga.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Sombras do passado de Bastiana

Aos 77 anos, Sebastiana Benedita Caetano vive só, numa modesta casa no Jardim Horizonte, periferia de Campo Mourão. Procura viver o presente e esquecer-se de um passado de angústias e sofrimentos. Na década de 60, a filha de 5 anos foi estuprada e morta pelo próprio pai e marido. Ele foi preso, condenado e depois desapareceu. Ela reza pra que continue assim.


Dilmércio Daleffe

Campo Mourão ainda vivia o início da década de 60 quando Sebastiana Benedita Caetano já trabalhava como doméstica. Num dia como tantos outros, ela retornou à sua casa, hoje Jardim Horizonte. Cansada da jornada, voltou devagar, passos lentos sob um céu cinzento, andando pelas ruas de terra a pensar na vida. Ao adentrar a casa humilde, de madeira sem tinta, viu uma cena de terror, que mudaria sua história. Avistou a pequena filha de cinco anos agonizando num dos cantos. Ela sangrava, chorava, não estava bem. Noutro canto estava o marido, João, bêbado, despreocupado com o estado da filha, que dizia não se importar. A menina inocente chamava-se Ivonaique e acabara de ser violentamente estuprada pelo próprio pai.
“Bastiana” largou o que carregava e pegou a filha. No colo, a carregou até o hospital. A entregou a um dos médicos e em seguida, deslocou-se até a polícia. Lá, descreveu a cena descomunal. Tentou imaginar a barbárie cometida pelo carrasco, João. Entre raiva e lágrimas, sobrou a sede por justiça. Os policiais rumaram imediatamente até a casa e prenderam o estuprador. Ao sair da delegacia, “Bastiana” voltou ao hospital. Ela queria cuidar da filha e, assim, tentar amenizar a dor. Queria estar ao seu lado, permanecer calada, apenas dar conforto. Mas todo o desejo da mãe foi logo massacrado. A menina já estava morta. Não suportou o ferimento ocasionado pelo homem. A pequena Ivonaique morreu horas depois. Morreu sem saber pra quê servia a figura de pai.

Conta “Bastiana” que João foi levado pela polícia no mesmo dia. Nunca mais o viu. Soube que havia sido condenado a 18 anos de cadeia. Permaneceu nove anos detido em Campo Mourão. Ficou outros nove em Curitiba. Quando foi levado a capital, teria ido junto a um bandido conhecido, o tal “Zé Cascavel”. Por coincidência, os dois eram amigos. “Nunca mais quis saber dele. Torço pra que tenha morrido. Aquela menina era a minha companhia. Ainda rezo pra ela”, disse.


Hoje, aos 77 anos, “Bastiana” vive só. Mas antes só do que mal acompanhada, diz o ditado. Ela recorda, ainda emocionada, o drama vivido ao lado do marido. Ela trabalhava, enquanto ele bebia. Ela quem levava o dinheiro pra casa, mas era ele quem o tomava, literalmente. Apanhou calada por anos e anos. Escutava agressões verbais e sentia na pele a força das mãos do carrasco. As humilhações eram constantes, chegando ao ponto de ser impedida até mesmo de freqüentar a igreja. “Ele tinha ciúmes do padre”, disse. Determinada vez, apanhou com uma faca. Para se defender, quase teve um dos dedos decepados. Embora vivesse uma tortura constante, não tinha coragem em denunciá-lo. Ele a ameaçava de morte. “Dizia que se eu fosse embora ia me matar”, afirmou. Definitivamente, a vida estava de costas pra “Bastiana”.

A mulher de 77 anos ainda é forte. De todos os possíveis problemas de saúde, possui apenas dores nas costas e olhe lá. Vai viver muito. Conta ela que suas raízes estavam fixadas em Getulina, interior do estado de São Paulo. Nasceu de uma família de negros. Eram dez irmãos. Acredita que apenas um deles tenha morrido. Na década de 50 veio para Campo Mourão com o marido. Chegou aos 23 anos e aqui teve oito filhos. Atualmente apenas uma filha está viva. “Bastiana” ficou 14 anos sem vê-la, mas a reencontrou em 2008, através de um programa de televisão.


“Bastiana” tem olhos grandes e um olhar marcante. Tem orgulho da sua cor e de sua força de vontade. Trabalhou durante muitos anos como doméstica. Passou outros tantos no corte de cana. E foi com esse trabalho quando conseguiu juntar dinheiro e comprar sua pequena casa. Com a morte dos filhos, e a cadeia do marido, passou a viver só. Hoje, já aposentada, tem dinheiro suficiente para manter-se. Como não consegue ficar parada, ainda recolhe latinhas pelas ruas da cidade. Fatura entre R$40 e R$50 ao mês. “As latinhas já pagam algumas continhas”, diz.

Religiosa, mantém uma vela acesa na cômoda do quarto, ao lado da imensa cama de casal. Muitos santos estão presentes sobre o móvel, em especial, Nossa Senhora Aparecida. Sempre vai à igreja e já faz parte de um grupo de orações. “Tenho muita fé em Deus. Depois que passei a acreditar nele, minha vida melhorou”, garante. Nunca aprendeu a ler e escrever. O analfabetismo se deve ao pai, quem sempre a proibiu de estudar. “Dizia ele que mulheres não tinham que estudar. Somente os homens”, lembra. Hoje, ela depende de vizinhos para entender documentos.

A casa própria, em alvenaria, é bastante modesta. Um quarto, uma cozinha, o banheiro e uma varanda. Na verdade é uma meia água, ainda sem tinta, mas que representa cada gota de suor derramada nos canaviais. Para cozinhar cultua o velho e bom fogão a lenha. Tem madeira de sobra pra queimar. O arroz e feijão sai com outro gosto. O sabor da vida gostosa. Também na varanda, uma mangueira faz a sombra pros finais de tarde. É lá, numa cadeira confortável que ela vai vendo a vida passar, sozinha, mas longe da solidão. Tem muitos amigos pela vizinhança. Visitas são freqüentes. Numa prosa longa ou curta, vai esquecendo que mora só. A Tv é outra quem a distrai. Vê novelas, programas locais e alguns filmes.

Mas aos 77 anos, acredita já ter vivido de tudo um pouco. Aprendeu não gostar de emprestar dinheiro. Já fez algumas vezes, mas pra receber sempre é difícil, diz ela. Como crítica social, pede ao município que cuide mais do cemitério. “Dias desses morreu uma amiga e fui ao enterro. Nunca vi um cemitério tão sujo e mal cuidado. Quando eu morrer não quero ficar no meio da quiçaça”, disse. Assim dona “Bastiana” segue seu destino, distante dos filhos mortos e do marido desaparecido. Apesar da vida sofrida, principalmente devido às perdas, não é uma mulher angustiada, triste. “Aguardo somente a vontade de Deus. Quando ele quiser, virá me buscar”.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A herança maldita de Senhorinha Cardoso

Ela nunca almejou ser empresária. Queria apenas livrar-se de urnas funerárias herdadas pelo destino. Ela é Senhorinha Cardoso de Oliveira, uma aposentada que, aos seus 82 anos de idade, descobriu ter uma problema a mais na vida.



Dilmércio Daleffe

Rua Dias Adorno, 174, município de Quarto Centenário, região Noroeste do Paraná. Ali, numa casinha simples em alvenaria encontram-se empilhadas 116 urnas funerárias, guardadas já há seis anos. Quem carrega o fardo sobre os caixões é Senhorinha Cardoso de Oliveira, uma aposentada de 82 anos de idade prestes a explodir de raiva. Na verdade, o material não era dela. Nunca havia sido. Trata-se de um presente de grego, um incômodo que a acompanha desde a chegada de um casal na pequena cidade, ainda em 2006. Os dois alugaram uma sala comercial de Senhorinha e, um mês depois, descarregaram um caminhão com os artigos indesejáveis. Depois disso viajaram e nunca mais retornaram à cidade. Hoje, sem saber o que fazer com os artigos fúnebres, a aposentada tem certeza de que ganhou uma herança maldita. A situação é tão constrangedora que ela sorri diante do problema. Não sabe mais o que fazer.

Senhorinha é uma mulher sofrida. Veio de Monte Azul, cidade mineira, há 50 anos com os pais em busca de uma vida melhor. Casou, criou três filhos e perdeu o marido em 2006, mesmo ano em que passaria a herdar os caixões. Ela nem desconfiava disso. Naquele ano uma tal Maria do Carmo, acompanhada do esposo, Paulo, chegaram em Quarto Centenário e alugaram uma pequena sala comercial dela. Pagaram à vista o primeiro mês. Disseram que ali montariam um brechó chique. No entanto, passado um mês, um caminhão chegava com mais de 200 urnas funerárias. Como já haviam pago pelo aluguel, logo acomodaram os caixões. Senhorinha conta que o negócio deu errado porque o casal não conseguiu autorização para funcionar. Tentaram abrir a funerária em outras cidades da região. O insucesso os acompanhou, sempre. Um tempo depois, a aposentada não os viu mais.



Enquanto o tempo passava, as urnas continuavam em sua sala. Não recebia pelo aluguel e, ainda, tinha que se deparar com o imóvel lotado pelo material indesejável. Uma cena de horror. O desespero logo apareceu. Foi então que ainda em 2010, decidiu pegar um ônibus e ir de encontro ao casal em Foz do Iguaçu. “Sabia que eles moravam lá. Fui até Foz e os encontrei”, disse. Lá, segundo ela, Maria e Paulo informaram que não tinham mais dinheiro para tocar o negócio. Estavam sem condições até mesmo de resgatar os caixões. Eles também teriam dito que, a partir daquele instante, Senhorinha era a dona das urnas. Ali, naquele momento, o drama definitivo da aposentada iniciava.

Ao retornar a Quarto Centenário, Senhorinha e a filha passaram a ligar a todas as funerárias da região na tentativa de vender o material. Ninguém quis. Procurou então o prefeito da cidade a fim de que pudesse comercializar as urnas. Também não conseguiu. Num beco sem saída, teve ajuda municipal para, ao menos, levar os caixões até uma casinha dela. Finalmente, a sala comercial estava livre do incômodo. Desesperada, voltou a ligar às empresas do ramo para, desta vez, doar o material. Também não conseguiu. Ninguém aceitou a doação. Ela então não podia vender e, muito menos doar aquela herança maldita. Na última tentativa em livrar-se do problema, foi até a prefeitura pedir que levassem os caixões para que ateassem fogo. Também não permitiram. Senhorinha não tinha mais nada a fazer. O jeito foi sentar e dar risada. “Tristeza não paga conta”, disse.

Hoje, faz dois anos que todo o material fúnebre está amontoado na casinha da Rua Dias Adorno. Vândalos e curiosos quebraram os vidros do imóvel. Com isso, chuva e vento destruíram muitas unidades. Segundo ela, existem caixões de até R$12 mil, alguns importados até da Itália. Das 116 urnas, apenas 30 estão intactas. Senhorinha tem esse nome por causa da sua bisavó – era o mesmo nome. Atualmente, ela está aposentada e vive ao lado de uma das filhas, Cleuza. Reside na própria casa, aos fundos da sua sala comercial. Mas assim como todos, ela possui problemas. No seu caso, tem um a mais que todo mundo. Não consegue se livrar dos caixões. “Diante de tudo isso, descobri que nem quando eu morrer poderei usar um caixão desses. É que as funerárias não aceitam caixões se não forem seus. Tô lascada mesmo”, concluiu sorrindo.

Viviane quer um lugar ao sol




Dilmércio Daleffe

Há dois meses, Na Vila Rio Grande, periferia de Campo Mourão, Viviane dos Santos viveu seu pior pesadelo. A casa em que morava pegou fogo. Para consolidar a tragédia, seu irmão Luiz,de apenas 12 anos, morreu vítima das chamas. Os dois viviam juntos, numa pequena casa velha de madeira, azul e com poucos cômodos. A irmã cuidava e criava o irmão. A fiação era irregular, e ocasionou o incêndio. No momento do fogo, Viviane e Luiz dormiam. Foram acordados por vizinhos. Ela saiu ilesa. Luiz não teve a mesma sorte e morreu horas depois. Apesar de perder quase tudo, Viviane está em pé, lutando contra as lembranças do pequeno menino. Ela ainda chora, e muito. Mesmo assim, decidiu tocar a vida em frente. Casou há um mês, constituiu uma nova casa, mas agora precisa de ajuda para montar sua residência, também azul. Ela necessita de móveis que as chamas levaram.

Viviane é a mais velha de uma família de três irmãos. A mãe é a mesma, mas o pai, não. Praticamente nem sabem de quem eram filhos. Juntos, ainda na infância, vivenciaram cenas de horror protagonizadas pelo alcoolismo da mãe. Ela acabou abdicando do amor pelos três. Os trocou pelo álcool. Como resultado pararam em orfanatos. A mãe passou a residir nas ruas de Cascavel. Antes de morar em casas-lar, Luiz carregou o pesado fardo das ruas, ao lado da mãe, Marli. Entre sarjetas e botecos, viu coisas demais para uma criança. Assistiu sua própria genitora perder-se diante das fraquezas humanas. Luiz morreu ainda inocente, sem ver a recuperação da mãe. Era o seu maior sonho. “Não sei se ela se recuperará um dia. Sei que voltou às ruas. Está com cirrose”, diz Viviane.

Agora Viviane casou-se. Mora numa outra casinha alugada, também pequena e da mesma cor da antiga, azul. Reside no centro da cidade na companhia do marido, Edemilson. Sem recursos financeiros, ela deseja mobiliar sua residência. Dorme num projeto de cama. A estrutura existe, mas não tem estrado. No lugar do sofá da sala está uma cama de solteiro. As louças da cozinha estão ausentes. A ela restou pedir. Não é feio.

Entre a falta da mobília e o que restou de sua vida, sobraram as lembranças daquele menino, Luiz. As lágrimas ainda correm seu rosto. Dias desses tentou o suicídio. Não suportou a dor da perda. Ficou seis dias na UTI da Santa Casa. Quem a ajuda é o marido e “Tigrinho”, o gato de estimação. “Parece que Deus colocou esse gato na minha vida. Ele vem me ajudando a passar os dias”, diz Viviane. Ela também não se sente bem nos finais de tarde. É quando observa crianças voltando da aula. É aí que a imagem a remete às saudades do irmão. “Ele chegava do colégio e deixava seus sapatinhos sujos na porta. Eu os limpava. Tenho saudades. Muitas saudades”. Logo depois do fato, Viviane foi ajudada por membros da Igreja Batista, mais especificamente, pela família do reverendo Dickerson. “Devo muito a Judy, mulher do reverendo. Me ajudou de todas as maneiras possíveis”, disse. Para ajudar Viviane ligue para ela – 9813-2981.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Jovelino, o poeta sem escola

Jovelino e Lázara formam um casal à moda antiga. Com vontade de expressar seus sentimentos à esposa, Jovelino, hoje aos 85 anos, aprendeu a escrever e transformou-se num poeta. O homem que jamais freqüentou uma escola vem colocando no papel todo o amor pela mulher, “Lazinha”, de 83 anos. Uma verdadeira história de amor.


Dilmércio Daleffe


Aos 85 anos, Jovelino Soares da Silva é um caboclo à moda antiga. Casado há 63 anos com “Lazinha”, ele não se cansa em escrever versos e poemas dirigidos a esposa. Tão apaixonado que vem aprendendo as palavras nas últimas duas décadas. Tudo pra falar do sentimento pela mulher. Jamais freqüentou uma escola. Unidades escolares quase não existiam na década de 30. Ainda mais nos rincões onde morava, lá pelos lados da Serra do Cadeado, próximo ao município de Tibagi. Jovelino é um caso raro. Uma figura sem igual. Depois de passar uma vida toda na roça, plantando milho, feijão e mandioca, transformou-se num poeta. Num poeta sem escola.

As mãos calejadas não conseguem esconder um passado difícil, de muito suor. No cabo da enxada escorreram muitas lágrimas. Conta Jovelino que já, aos sete anos ajudava o pai a derrubar o mato da propriedade. Eles iniciavam a demarcação de suas poucas terras. Naquela época tudo era verde. Tudo era mato. Hoje a vida mudou, até parece não ter mais graça, diz. Nos poemas escritos, as palavras encaixam-se perfeitamente com as saudades de sua infância. A rima é rica. As frases fortes. E quando é ele que faz a leitura dos textos, a imaginação corre solta. Gostoso de escutar, indescritível divagar.



Jovelino vem de uma família cujos pais descendem de índios. Por isso mesmo se considera um bugre, um caboclo caipira. Eram 12 irmãos. Além da esposa, Lázara, ele fala muito da mãe, Maria dos Anjos, que morreu quando ele ainda tinha 12 anos. Nos poemas lembra o anúncio do pai sobre a saúde da mãe. Disse: “Não chore papai, você é forte. Quem ficará sem mãe somos nós”. Quem o ajuda na confecção dos versos é um velho e surrado dicionário. “Sempre que tenho dúvidas recorro ao pai dos burros”, disse.

“Lazinha” tem hoje 83 anos e é natural de Santo Antônio da Platina. Quis o destino que a família dela se mudasse para Faxinal na década de 40. Foi a mesma época em que Jovelino morou na cidade para abrir uma propriedade ao lado do pai. Depois de um tempo os dois se conheceram. Passados 15 dias, já estavam casados. Recentemente comemoraram bodas de Jade. “Naquele tempo não podíamos namorar. Então casamos”, lembra Jovelino.



A trajetória como poeta teve início há 20 anos. Com vontade em expressar-se buscou ajuda de pessoas que já sabiam ler e escrever. Sem cadernos na época, ele aprendia a escrever na casca de palmitos. Aos poucos foi deixando o analfabetismo e colocando no papel o sentimento de toda uma vida. Dona “Lazinha” que o diga. Ela é a principal fonte de inspiração. Uma senhora com problemas de saúde, que anda com dificuldades, mas a verdadeira dona do coração de Jovelino. Uma história de amor sem igual.

Morando em Iretama desde 1988, ele vive numa casa simples, mas própria. É lá, numa pequena chácara que insiste em cercar-se de objetos que o remetem a infância. Construiu um diminuto monjolo e ainda guarda diversas ferramentas de seu tempo na lavoura. Mantém uma descalçadeira – uma peça em madeira para retirar as botas -, uma velha cangalha de carga, broacas – malas para carregar suprimentos nas montarias -, além de um surrão – apetrecho como uma espécie de bolsa - de mais de 180 anos. Além disso, mantém arquivado notas fiscais da década de 60, de quando ainda vendia produtos e cereais a empresas do Paraná. Além de tudo isso, Jovelino mantém um cavalo em seu quintal, a quem chama de “Paciência”. “Ele não é um animal, é meu amigo”, diz. Quando decide ir ao centro da cidade, vai com “Paciência”.


Hoje, Jovelino lembra do passado e não se arrepende de nada. Ao contrário. É muito feliz por tudo o que viveu. Suas ricas lembranças o mantém vivo. “Já fiz de tudo na vida. Sou contente por isso”, afirma. Mas quando vê uma criança fora da escola, a tristeza logo aparece. Pensa no seu tempo e nas dificuldades em freqüentar os bancos escolares. “As crianças de hoje não podem estar distantes da escola. As autoridades têm que fazer alguma coisa”, diz. Afinal, como ele mesmo disse, a verdade não se inventa.

Assim, Jovelino e “Lazinha” vão vivendo. Num mundinho criado por eles, sorriem e suas histórias vão dizendo. São o espelho de uma parte da população impedida de alcançar a educação. Quem sabe um dia os cidadãos poderão chamar o país de nação. Mas afinal, quase todo roteiro real termina assim. Mesmo sem educação, Jovelino alcançou a sabedoria. Embora o casal não ligue muito para isso, continuam felizes, até o triste dia do fim.