domingo, 23 de setembro de 2012

A cruz e a espada de Ozires


Ainda menino, Ozires da Cruz, foi levado pela mãe até a Escolinha Tagliari. O futebol o chamava. Antes passou numa loja onde comprou camisa do Santos e um par de tênis para salão. Chegou acanhado, tímido, sem saber que ali seria rei. Atleta jovem adquiriu respeito, mesmo com as canelas finas de garoto. Jogava como fixo, na defesa. Mas era ele quem organizava as jogadas e, como tiro fatal, num tom de desprezo aos goleiros, disparava o torpedo. Tinha um chute indefensável, forte, certeiro. Ozires era ídolo, embora não soubesse. Certamente possuía futuro garantido como jogador. Mas quis o destino que sua vida se transformasse. Aos 13 anos de idade, tudo mudou. Num simples mergulho rotineiro em um rio, numa brincadeira de criança, bateu com a cabeça. Foi impedido de andar. A bola foi trocada pela cadeira de rodas. O futebol perdeu uma preciosidade. Um diamante deixou de ser revelado. 
Arquivo Pessoal
Em Campo Mourão, Ozires reencontrou amigos de infância e os treinadores da Tagliari

Ozires veio de uma família digna. Bons trabalhadores, gente honesta, mas sem recursos. Filho de Lúcia e Otacílio, nasceu em abril de 71 em Campo Mourão. Começou no futebol aos sete anos, depois que a mãe ouviu no rádio uma entrevista de Itamar Tagliari. Era década de 70 e ele abria a tão famosa escolinha. Foram cerca de seis anos jogando pelo time. Época de muitas amizades e inocência. Ozires participou de diversas competições. Sempre foi um dos destaques. Viajava ao interior de São Paulo para jogar futebol de campo. No interior do Paraná competia no salão. “Lembro que nosso time era bom. Éramos respeitados. Fomos duas vezes vice e uma vez campeões”, recorda.

O esporte na infância ajudou o menino tímido a ter uma adolescência saudável. “Com tantas viagens sem a presença dos pais, nos tornamos com certeza mais responsáveis. Coisas que a gente leva para toda uma vida”, diz. Ozires não esquece o aprendizado e tem eterna gratidão pelo mestre Itamar Tagliari. Tantas foram as disputas, algumas contra adversários de renome, como Palmeiras, Santos e Corinthians, que pensava em seguir carreira. E tinha plenas condições. Cá pra nós, não perdia pra nenhum daqueles “Meninos da Vila”. Mas, mesmo sendo santista, admirava Zico, o craque do Flamengo.

O destino do menino foi traçado em meados de 84. Naquele ano tudo mudaria. Ozires foi com a família morar em Guaíra, a cerca de quatro quarteirões do Rio Paraná. Costumava jogar bola na areia, a beira do rio. Depois entrava com os amigos na água para se refrescar. Era sempre assim. Mas naquele dia, no seu último mergulho, ele não sabe o que aconteceu. Já havia feito o mesmo pulo, a mesma entrada no rio várias vezes. Nunca, jamais, nada havia acontecido. Mas desta vez, bateu com a cabeça num banco de areia. Fraturou a coluna com lesão na medula. Com a pancada, perdeu todos os movimentos do pescoço para baixo. “Se um amigo que estava a meu lado não notasse que algo estava errado e me tirasse da água, teria morrido afogado”, acredita.

No mesmo dia do acidente Ozires foi até Umuarama, onde permaneceu por um mês. Mas o caso era grave e foi transferido a Curitiba. Em quatro meses a vida da família mudou radicalmente. A vida tranqüila de antes transformou-se numa tempestade. Na capital do estado, sem conhecer ninguém, passaram a morar numa quitinete. Era o que podiam pagar. Na época, a ajuda de muitas pessoas de Guaíra e Campo Mourão foram fundamentais.
Arquivo Pessoal
Ozires no ano de 1981 

Ozires tinha 13 anos quando tudo aconteceu. Menino, não tinha idéia o que significava uma lesão da medula. Acreditava que as coisas voltariam a ser como antes. Que depois de um tempo voltaria a andar. Mas era ilusão. O fim dos sonhos do precoce jogador já havia sido decretado. A vida lhe pregara uma grande peça. Daquelas vistas apenas em filmes. “Quando foi decidido que iríamos a Curitiba, pensei comigo: Preciso levar minhas chuteiras pra tentar jogar em um time da capital, quanta ilusão. Por um lado foi bom ainda pensar dessa forma”, disse. Durante o tratamento, Ozires não teve momentos de revolta, tristeza ou desespero. Segundo ele, o processo foi movido pela tranqüilidade.  Finalmente, quando deu conta de como seria sua vida dali por diante, já estava adaptado. O futebol foi esquecido. A paixão mudou agora para os computadores. Ozires descobriu outro talento.

Desde os 14 anos começou a se especializar em informática. Fez vestibular e passou no curso de Processamento de Dados na escola técnica da Universidade Federal do Paraná. Logo após iniciar os estudos, ganhou o primeiro computador, graças a generosidade do casal Denir e Iracema Daleffe. Em 1994 concluiu o aprendizado e começou a trabalhar como programador, além de dar aulas de informática em casa. Ganhava seu próprio dinheiro e já ajudava a mãe com algumas contas. Em 1998 fez concurso público para o cargo de Técnico em Informática do Serpro e passou. Mudanças a caminho. Passou a trabalhar oito horas por dia. “A satisfação de começar a trabalhar com o que sempre sonhei era muito grande. Mas sem o apoio de meus pais e irmãs não teria conseguido. Devo muito a eles”, afirma.

Insistente, depois de alguns anos trabalhando como técnico, acreditava que poderia melhorar ainda mais na profissão. Foi então que em 2002 passou no vestibular para o curso de Tecnólogo em Informática, também da UFPR. Um ano depois trabalhava de dia e estudava a noite. Quem disse que Ozires tinha limitações, errou. Ele era a perseverança em pessoa. Em 2005, faltando um semestre para acabar o curso, fez concurso para Analista de Sistemas do Serpro e, é claro, passou. Foi como num daqueles chutes certeiros, da época em que fuzilava os goleiros. “Assumi o cargo de Analista de Sistemas, no qual estou até hoje”, disse.

Olhando para tudo o que passou, Ozires está feliz, satisfeito com suas conquistas. Se recorda da pequena Campo Mourão, ainda na década de 70, quando voltava cansado dos treinamentos da Tagliari. Lembra de suas esquinas, do Colégio Santa Cruz. Foi uma época de felicidade, ainda quando não tinha preocupações. Mas infelizmente, o tempo não volta. Dias desses, o menino crescido, hoje aos 41 anos de idade, retornou à cidade e reviu alguns amigos de infância – David Camargo, Marcelo Chiroli, Dilmércio Daleffe, o treinador Mário e o mestre Itamar Tagliari. Diante de tudo, de todas as mudanças e transformações, Ozires diz que apenas uma coisa não se transformou: sua fé em Deus. “Eu e minha família passamos por momentos bem complicados, acreditar em Deus com certeza ajudou a superar tudo com equilíbrio, sem desespero, na certeza que algo melhor viria”. Definitivamente, Ozires é o cara.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Júlio segue as placas. Mas anda sem direção


Dilmércio Daleffe
Júlio é apenas Júlio. Mostrando sofrimento nos pés e no rosto, diz ter apenas 30 anos de idade. Mas não é bem assim. Certamente possuí seus sessenta e poucos, e continua a andar pelas estradas do país. Ele é mais um andarilho, daqueles que não gosta de pessoas por perto. Evita o ser humano, mas se condiciona à rodovia. Seja ela qual for. Sem querer prosa à entrevista, acabou falando. Pouco. Mas falou.
Seu nome é somente Júlio. Não sabe o sobrenome. Perdeu os documentos já há bastante tempo. É, portanto, mais um entre milhares de invisíveis brasileiros a rodar por aí. Foi encontrado na BR-369 próximo a Ubiratã. Disse estar vindo de Foz do Iguaçú, onde passou alguns dias. Estava sentado sobre a armação de um guard rail. Cansado e sedento, reunia forças para caminhar mais 20 quilômetros. Carregava um saco nas costas. Dentro, levava algumas roupas, cobertas e esperança.
“Ainda não comi nada hoje não senhor”, disse o caminhante. Segundo ele, já teria andando cerca de 20 quilômetros na parte da manhã. Mas o sol e o calor eram demais. Ele sufocava. Júlio é um senhor de idade. Tem os cabelos longos. Mostra perseverança. Calçava um tênis Nike já surrado pelo asfalto. Os dois pés estavam furados. Pelo caminho diz que vai ganhando sapatos, comida e água. Únicos combustíveis pra quem decidiu sair pelo mundo.
Em sua trajetória não deseja muito. Quer chegar ao estado do “Ivaí”. Não soube explicar melhor. Diz não adentrar às cidades por onde passa. “Prefiro evitar as pessoas”, disse. Por isso, dorme em pontos de ônibus pela rodovia. A roupa suja indica indisciplina quanto à higiene. Não liga pra isso. Acredita em Deus e diz caminhar ao seu lado. Júlio é um cara sofrido. Certamente mantém uma história escondida. Um drama familiar enterrado por aí. Mas este é um problema seu. Não quis dividi-lo.
Júlio segue as placas. Mas anda sem direção. Não sabe pra onde vai, nem quem quer encontrar. Está sozinho no mundo há bastante tempo. Passa dias sem conversar. Mas parece ser isso o que traçou. Seus sonhos deixaram de ser grandes, como os de meninos. A luta agora é apenas pela sobrevivência. Deixou o mundo dos problemas para aventurar-se numa única estrada: a vida.     
   
      

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

No caminho escuro, meninos foram viciados

Eles poderiam ter sido crianças comuns. Mas deixaram os brinquedos para experimentar drogas e sacar armas de verdade. Tornaram-se “adultos” antes do tempo, acabaram viciados e agora estão pagando por isso.  


Dilmércio Daleffe
Eles ainda são adolescentes, quase crianças. Tem as mãos frágeis, lisas, sem calos. Mas deixaram a infância de lado e acabaram dependentes de drogas. No caminho tortuoso, alguns se transformaram em traficantes, outros em assaltantes. Na escolha errada, mataram. Meninos do crime, não tiveram escolha. Era matar ou morrer. Tudo pela droga. Tudo pelo vício. Foram influenciados por más companhias, deixaram a escola e terminaram viciados, doentes por um câncer social ainda sem cura. Arrependidos, agora estão na Comunidade Terapêutica Redenção (CTR) em busca de salvação. Querem se libertar, realizar os sonhos de meninos. “Quero sair e virar engenheiro civil. Ainda da tempo pra estudar”, revelou Mateus, um adolescente de 17 anos, mas com curriculum criminal de gente grande.
Mateus – os nomes aqui serão todos fictícios – chegou à comunidade há quatro meses. Ele deseja livrar-se do crack. Tinha oito anos quando começou a vender drogas. Aos 13 já era viciado. Atravessava a Ponte da Amizade com quilos de crack amarrados ao corpo. Aprendeu com a vida que a lei do crime é cruel demais. Acabou pagando por isso. Tirou a vida de uma pessoa. “Melhor a mãe dele chorar que a minha”, disse. Hoje está arrependido. Estava destruindo a ele e a própria família. Em 2011 passou três meses detido. Mas agora, selou seu destino: quer ser uma pessoa de bem. “Estou deixando o caminho do mal”, afirmou. Mateus se mostra um jovem maduro. Sabe o que diz. Certamente não é vilão, mas sim, mais uma vítima do vício.   
Aos 14 anos, Marcos só não é mais uma criança porque já fez coisas demais em sua vida. Aos sete anos iniciou no cigarro. Aos 10 já havia entrado em coma alcoólico. Aos 13 usava cocaína. Passou então ao tráfico. Comprou uma arma e, na lei dos traficantes, matou outro rapaz. O crime da vítima era apenas uma pequena dívida. Foi julgado, sentenciado e morto sem piedade. “Se pudesse voltar no tempo, não faria de novo”, diz. Mas o tempo não volta. Hoje, reflete seus atos como um erro do passado. Está há sete meses internado. Acredita estar se livrando do vício. E isso basta. Deseja sair e um dia ter uma família, mulher, filhos e tudo mais que a sociedade exige. “Acredito em Deus. Ele vai me ajudar”, disse. Mesmo com mãos de criança, os dedos de menino já puxaram um gatilho.     
Lucas tinha uma vida normal. Ainda menino trabalhava de mecânico para ajudar em casa. Ia a escola, brincava com os amigos e respeitava a mãe. Mas isso foi até os 13. Depois disso conheceu a maconha. Foi influenciado por falsos amigos e acabou doente. Passou a usar crack e começou a roubar a família. Perdeu a personalidade de bom menino ao ameaçar a própria mãe. Viciado, foi internado duas vezes. Não teve êxito. Hoje, aos 16 anos, está mais uma vez disposto a abandonar a droga. “Quero voltar a ser eu mesmo, sem drogas”, disse.
João não sabe como ainda está vivo. Nasceu dentro de uma favela cuja violência imperava. Aos seis anos de idade já era “aviãozinho” do tráfico. Uma espécie de office boy dos traficantes. Cresceu aprendendo como ser bandido. Acabou viciado aos 13, depois de usar LSD, álcool e maconha. Começou a mexer com prostituição e se profissionalizou no tráfico. Adotou o crack e não parou mais. Por duas vezes tentou matar. Foi preso quatro vezes. Hoje, aos 19 anos, está sozinho no mundo. A mãe o abandonou. Não agüentou a rotina do filho. No fundo do poço, decidiu ele mesmo pedir ajuda. Foi acolhido no CTR e espera livrar-se do mal. Deseja sair com saúde e, um dia, ser dono do próprio nariz. Quer ser empresário.
Bento veio de uma família completamente desestruturada. A mãe alcoólatra acaba de deixar o internato de outra entidade, voltada a dependentes químicos. Dois irmãos também acabaram viciados. Um se recuperou, outro está preso. Vendo a destruição da casa, Bento decidiu dar um grito de liberdade, e se entregou à cura. Ele tem 18 anos, mas desde os sete já fumava. Usou crack e fez coisas erradas. Roubou, traficou e já esfaqueou. Trata-se de um rapaz franzino, de voz baixa, cuja aparência lembra um bom menino. E possivelmente o é. Está lutando para ter as oportunidades que, antes, lhes foram negadas. Bento acredita em Deus, em anjos e demônios. Por isso quer seguir pela estrada correta. Se antes não conseguia ver seu futuro, hoje pensa em reverter a ajuda recebida como monitor do próprio CTR. Assim como ele, Mateus, Marcos, Lucas e João são vítimas das mãos de traficantes. Julgá-los agora é tarde demais.    
Tratamento para maiores de 14
De acordo com Silvia Andreia da Rocha, psicóloga e coordenadora do CTR, a entidade recebe pedidos para internação de crianças com até oito anos. Mas o órgão recebe jovens somente a partir dos 14. Hoje, são nove adolescentes em tratamento. Segundo ela, depois de nove meses, os dependentes têm alta. Apenas 50% deles conseguem controlar a “doença”. Outra parte volta às drogas. Embora a dependência não seja nenhuma novidade, a cada dia os casos chocam os profissionais do CTR. “Todo dia me surpreendo com as histórias daqui”, disse.     
O que fazer para evitar as drogas
Especialistas garantem que o aumento de uso de drogas entre adolescentes está condicionado a diversos fatores. Possivelmente o mais notável está no aparecimento de tóxicos com custo baixo. Ou seja, acessível a qualquer condição financeira. Para piorar a situação, com carga excessiva de trabalho, os pais passaram a ter pouco tempo com os filhos. A conseqüência é desastrosa. “A falta de esclarecimento dos pais, que tem dificuldade de orientar seus filhos e acham que a escola esta fazendo isto, só piora o quadro”, afirma a psicóloga Alice Maria de Moraes.

De acordo com ela, é muito difícil e complicado tratar a drogadição. O melhor a fazer é sem dúvida a prevenção. Cabe aos pais monitorarem seus filhos, saber aonde vão e quem são seus amigos. Segundo ela, é dever da família acompanhar de perto o adolescente. “Nesta fase ele é muito influenciado pelos amigos e colegas. Alguns sinais tornam-se evidentes quando o jovem inicia o uso de drogas”, disse.

Entre algumas dicas, a psicóloga  alerta para os intensos pedidos de dinheiro, mudança de comportamento, alteração de sono, mentiras, desrespeito a horários, limites e regras da casa. Além disso, as brigas com os pais e irmãos e a queda no rendimento escolar. Alice explica que os pais devem ficar atentos para evitar que a situação fuja ao controle, levando a atitudes extremas como expulsar o filho de casa. “Não devemos excluí-los da influência benéfica da família para deixá-lo nas mãos de traficantes, piorando ainda mais o caso”, diz. Outra recomendação é a de que os pais não devem achar que podem resolver sozinhos a situação. Segundo ela, deve existir a ajuda profissional, grupos de auto-ajuda ou até mesmo uma internação. Em Campo Mourão, a psicóloga orienta para que os pais procurem auxílio no conselho Tutelar. “Lá, a família terá a orientação necessária”.