Ainda menino, Ozires da Cruz, foi levado pela mãe até a Escolinha Tagliari. O futebol o chamava. Antes passou numa loja onde comprou camisa do Santos e um par de tênis para salão. Chegou acanhado, tímido, sem saber que ali seria rei. Atleta jovem adquiriu respeito, mesmo com as canelas finas de garoto. Jogava como fixo, na defesa. Mas era ele quem organizava as jogadas e, como tiro fatal, num tom de desprezo aos goleiros, disparava o torpedo. Tinha um chute indefensável, forte, certeiro. Ozires era ídolo, embora não soubesse. Certamente possuía futuro garantido como jogador. Mas quis o destino que sua vida se transformasse. Aos 13 anos de idade, tudo mudou. Num simples mergulho rotineiro em um rio, numa brincadeira de criança, bateu com a cabeça. Foi impedido de andar. A bola foi trocada pela cadeira de rodas. O futebol perdeu uma preciosidade. Um diamante deixou de ser revelado.
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Em Campo Mourão, Ozires reencontrou amigos de infância e os treinadores da Tagliari |
Ozires veio de uma família digna. Bons trabalhadores, gente honesta, mas sem recursos. Filho de Lúcia e Otacílio, nasceu em abril de 71 em Campo Mourão. Começou no futebol aos sete anos, depois que a mãe ouviu no rádio uma entrevista de Itamar Tagliari. Era década de 70 e ele abria a tão famosa escolinha. Foram cerca de seis anos jogando pelo time. Época de muitas amizades e inocência. Ozires participou de diversas competições. Sempre foi um dos destaques. Viajava ao interior de São Paulo para jogar futebol de campo. No interior do Paraná competia no salão. “Lembro que nosso time era bom. Éramos respeitados. Fomos duas vezes vice e uma vez campeões”, recorda.
O esporte na infância ajudou o menino tímido a ter uma adolescência saudável. “Com tantas viagens sem a presença dos pais, nos tornamos com certeza mais responsáveis. Coisas que a gente leva para toda uma vida”, diz. Ozires não esquece o aprendizado e tem eterna gratidão pelo mestre Itamar Tagliari. Tantas foram as disputas, algumas contra adversários de renome, como Palmeiras, Santos e Corinthians, que pensava em seguir carreira. E tinha plenas condições. Cá pra nós, não perdia pra nenhum daqueles “Meninos da Vila”. Mas, mesmo sendo santista, admirava Zico, o craque do Flamengo.
O destino do menino foi traçado em meados de 84. Naquele ano tudo mudaria. Ozires foi com a família morar em Guaíra, a cerca de quatro quarteirões do Rio Paraná. Costumava jogar bola na areia, a beira do rio. Depois entrava com os amigos na água para se refrescar. Era sempre assim. Mas naquele dia, no seu último mergulho, ele não sabe o que aconteceu. Já havia feito o mesmo pulo, a mesma entrada no rio várias vezes. Nunca, jamais, nada havia acontecido. Mas desta vez, bateu com a cabeça num banco de areia. Fraturou a coluna com lesão na medula. Com a pancada, perdeu todos os movimentos do pescoço para baixo. “Se um amigo que estava a meu lado não notasse que algo estava errado e me tirasse da água, teria morrido afogado”, acredita.
No mesmo dia do acidente Ozires foi até Umuarama, onde permaneceu por um mês. Mas o caso era grave e foi transferido a Curitiba. Em quatro meses a vida da família mudou radicalmente. A vida tranqüila de antes transformou-se numa tempestade. Na capital do estado, sem conhecer ninguém, passaram a morar numa quitinete. Era o que podiam pagar. Na época, a ajuda de muitas pessoas de Guaíra e Campo Mourão foram fundamentais.
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Ozires no ano de 1981 |
Ozires tinha 13 anos quando tudo aconteceu. Menino, não tinha idéia o que significava uma lesão da medula. Acreditava que as coisas voltariam a ser como antes. Que depois de um tempo voltaria a andar. Mas era ilusão. O fim dos sonhos do precoce jogador já havia sido decretado. A vida lhe pregara uma grande peça. Daquelas vistas apenas em filmes. “Quando foi decidido que iríamos a Curitiba, pensei comigo: Preciso levar minhas chuteiras pra tentar jogar em um time da capital, quanta ilusão. Por um lado foi bom ainda pensar dessa forma”, disse. Durante o tratamento, Ozires não teve momentos de revolta, tristeza ou desespero. Segundo ele, o processo foi movido pela tranqüilidade. Finalmente, quando deu conta de como seria sua vida dali por diante, já estava adaptado. O futebol foi esquecido. A paixão mudou agora para os computadores. Ozires descobriu outro talento.
Desde os 14 anos começou a se especializar em informática. Fez vestibular e passou no curso de Processamento de Dados na escola técnica da Universidade Federal do Paraná. Logo após iniciar os estudos, ganhou o primeiro computador, graças a generosidade do casal Denir e Iracema Daleffe. Em 1994 concluiu o aprendizado e começou a trabalhar como programador, além de dar aulas de informática em casa. Ganhava seu próprio dinheiro e já ajudava a mãe com algumas contas. Em 1998 fez concurso público para o cargo de Técnico em Informática do Serpro e passou. Mudanças a caminho. Passou a trabalhar oito horas por dia. “A satisfação de começar a trabalhar com o que sempre sonhei era muito grande. Mas sem o apoio de meus pais e irmãs não teria conseguido. Devo muito a eles”, afirma.
Insistente, depois de alguns anos trabalhando como técnico, acreditava que poderia melhorar ainda mais na profissão. Foi então que em 2002 passou no vestibular para o curso de Tecnólogo em Informática, também da UFPR. Um ano depois trabalhava de dia e estudava a noite. Quem disse que Ozires tinha limitações, errou. Ele era a perseverança em pessoa. Em 2005, faltando um semestre para acabar o curso, fez concurso para Analista de Sistemas do Serpro e, é claro, passou. Foi como num daqueles chutes certeiros, da época em que fuzilava os goleiros. “Assumi o cargo de Analista de Sistemas, no qual estou até hoje”, disse.
Olhando para tudo o que passou, Ozires está feliz, satisfeito com suas conquistas. Se recorda da pequena Campo Mourão, ainda na década de 70, quando voltava cansado dos treinamentos da Tagliari. Lembra de suas esquinas, do Colégio Santa Cruz. Foi uma época de felicidade, ainda quando não tinha preocupações. Mas infelizmente, o tempo não volta. Dias desses, o menino crescido, hoje aos 41 anos de idade, retornou à cidade e reviu alguns amigos de infância – David Camargo, Marcelo Chiroli, Dilmércio Daleffe, o treinador Mário e o mestre Itamar Tagliari. Diante de tudo, de todas as mudanças e transformações, Ozires diz que apenas uma coisa não se transformou: sua fé em Deus. “Eu e minha família passamos por momentos bem complicados, acreditar em Deus com certeza ajudou a superar tudo com equilíbrio, sem desespero, na certeza que algo melhor viria”. Definitivamente, Ozires é o cara.