Dilmércio Daleffe
Sob a sombra de uma enorme araucária, sentado sobre um
pequeno banco improvisado de madeira – que ele mesmo construiu - Jorge de
Campos descansa o corpo de 74 anos. Ele passa as tardes a pensar sobre a vida
às margens da rodovia que liga Pitanga a Campo Mourão, quase todos os dias. Trata-se
de um local cativo. É ali onde vê o tempo correr. Como o vento que passa
trazendo suas memórias. Com o apelido de “Jorge Borracheiro”, ele é pessoa das
mais carismáticas. Jorge tem boa prosa. Fala baixinho, num arrastar de sílabas.
Sussurra as palavras. É até gostoso escutar.
Enquanto o tempo passa à maioria dos humanos, ele parece ter
se esquecido de Jorge. Tamanha experiência de vida ainda não se compara a sua
enorme vontade em viver. Assemelha-se a um menino contando as histórias pelas
quais passou. É instruído, tem bom vocabulário e nem aparenta ter nascido nos
idos de 40. Quase não assiste a tv e acredita que o país jamais irá melhorar.
“Me diga como isso aqui pode ser melhorado”, questiona.
Chapéu de palha surrado, cachimbo na boca, cabelos e barba
longa, unhas por fazer, Jorge até remete a um princípio de medo. Mas ao
conhecê-lo, o medo é trocado pela surpreendente magia da complexidade do ser
humano. O cara é um reduto de boas histórias. E os causos tornam-se prazerosos
ao serem ouvidos. Jorge é a prova de que o homem, antes de ser julgado, deve
ser ouvido.
“Tive tantas mulheres na vida que não consigo nem lembrar
dos nomes”, revela. Mesmo assim afirma não ter nenhum filho. Hoje, passados os
anos, ele vive numa casa modesta aos fundos de uma borracharia à beira da
rodovia. Mora com uma mulher – mais nova – e com a filha dela. Aposentado,
garante não faltar nada a sua mesa. Ganha pouco mais de R$800. Destes, R$70 são
para o fumo. Ele reclama que anda sem fôlego. Mas também, fuma desde os quatro
anos de idade. “Meus pais me ensinaram”, disse. Falando em pais, sua mãe –
Aurita – está viva ainda. Possui 95 anos, mora a dois quilômetros dele e é
bastante encrenqueira. “Ela é brava demais”, confirma.
Jorge nasceu em Pitanga. Seus pais vieram do Rio Grande do
Sul ainda com a cuia na mão. Na cidade, ele andava até 15 quilômetros a pé para
estudar. E foi assim, com determinação, que aprendeu a ler e escrever. Trabalhou
de tudo. Começou na roça ao lado de 12 irmãos. Depois foi serralheiro, abriu
estradas e atuou por algum tempo junto à delegacia de Pitanga. Era lá – nos
anos 60 – quando colaborava em prender bandidos da região. Com a fama de
“ordeiro”, uma vez foi segurança de um bailinho local. Ao aconselhar um jovem
sobre a bebedeira e arruaças, levou nove tiros. Nenhum deles o acertou.
Talvez sua crença em Deus o tenha protegido até hoje. “Eu
não gosto de igreja. Mas acredito muito em Deus e em Nossa Senhora Aparecida”,
disse. Atualmente recebeu o apelido de “Maridão”. E ele até gosta. Afinal de
contas está ao lado de uma companheira bem bacana. “Ela me veste, me da de
comer”. Tranquilo com a situação, já vão quatro anos sem cortar a barba. E as
experiências de vida o ensinaram a não temer nada. Muito menos a morte. “Não
temo a morte. Mas quando vejo alguém carregando uma foice perto de mim eu já
fico cabreiro”, disse.
Como aposentado, Jorge passa os dias a pensar. Aproveita a
vida com a companheira e, quase sempre, vai ao banco de madeira refletir sobre
tudo. Ao lado da amiga araucária, pede licença para deleitar suas sombras.
Acende o velho cachimbo e assim, vai colecionando amigos que por ali passam. Na
verdade, Jorge acabou transformando-se num contador de boas histórias. Mas
afinal, pra que serve o tempo senão formar o homem para repassar suas
experiências? No caminho escolhido por ele próprio, Jorge continua sentado em
seu banquinho. Vê os carros passarem pela estrada. As pessoas andarem pela
calçada. E o tempo? O tempo se esqueceu de Jorge.
Muito obrigado pelo texto! Jorge era meu tio, irmão mais velho do meu pai.
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