domingo, 25 de setembro de 2016

Jorge, o banco e a sombra da araucária




Dilmércio Daleffe

Sob a sombra de uma enorme araucária, sentado sobre um pequeno banco improvisado de madeira – que ele mesmo construiu - Jorge de Campos descansa o corpo de 74 anos. Ele passa as tardes a pensar sobre a vida às margens da rodovia que liga Pitanga a Campo Mourão, quase todos os dias. Trata-se de um local cativo. É ali onde vê o tempo correr. Como o vento que passa trazendo suas memórias. Com o apelido de “Jorge Borracheiro”, ele é pessoa das mais carismáticas. Jorge tem boa prosa. Fala baixinho, num arrastar de sílabas. Sussurra as palavras. É até gostoso escutar.

Enquanto o tempo passa à maioria dos humanos, ele parece ter se esquecido de Jorge. Tamanha experiência de vida ainda não se compara a sua enorme vontade em viver. Assemelha-se a um menino contando as histórias pelas quais passou. É instruído, tem bom vocabulário e nem aparenta ter nascido nos idos de 40. Quase não assiste a tv e acredita que o país jamais irá melhorar. “Me diga como isso aqui pode ser melhorado”, questiona.  

Chapéu de palha surrado, cachimbo na boca, cabelos e barba longa, unhas por fazer, Jorge até remete a um princípio de medo. Mas ao conhecê-lo, o medo é trocado pela surpreendente magia da complexidade do ser humano. O cara é um reduto de boas histórias. E os causos tornam-se prazerosos ao serem ouvidos. Jorge é a prova de que o homem, antes de ser julgado, deve ser ouvido.

“Tive tantas mulheres na vida que não consigo nem lembrar dos nomes”, revela. Mesmo assim afirma não ter nenhum filho. Hoje, passados os anos, ele vive numa casa modesta aos fundos de uma borracharia à beira da rodovia. Mora com uma mulher – mais nova – e com a filha dela. Aposentado, garante não faltar nada a sua mesa. Ganha pouco mais de R$800. Destes, R$70 são para o fumo. Ele reclama que anda sem fôlego. Mas também, fuma desde os quatro anos de idade. “Meus pais me ensinaram”, disse. Falando em pais, sua mãe – Aurita – está viva ainda. Possui 95 anos, mora a dois quilômetros dele e é bastante encrenqueira. “Ela é brava demais”, confirma.

Jorge nasceu em Pitanga. Seus pais vieram do Rio Grande do Sul ainda com a cuia na mão. Na cidade, ele andava até 15 quilômetros a pé para estudar. E foi assim, com determinação, que aprendeu a ler e escrever. Trabalhou de tudo. Começou na roça ao lado de 12 irmãos. Depois foi serralheiro, abriu estradas e atuou por algum tempo junto à delegacia de Pitanga. Era lá – nos anos 60 – quando colaborava em prender bandidos da região. Com a fama de “ordeiro”, uma vez foi segurança de um bailinho local. Ao aconselhar um jovem sobre a bebedeira e arruaças, levou nove tiros. Nenhum deles o acertou.

Talvez sua crença em Deus o tenha protegido até hoje. “Eu não gosto de igreja. Mas acredito muito em Deus e em Nossa Senhora Aparecida”, disse. Atualmente recebeu o apelido de “Maridão”. E ele até gosta. Afinal de contas está ao lado de uma companheira bem bacana. “Ela me veste, me da de comer”. Tranquilo com a situação, já vão quatro anos sem cortar a barba. E as experiências de vida o ensinaram a não temer nada. Muito menos a morte. “Não temo a morte. Mas quando vejo alguém carregando uma foice perto de mim eu já fico cabreiro”, disse.


Como aposentado, Jorge passa os dias a pensar. Aproveita a vida com a companheira e, quase sempre, vai ao banco de madeira refletir sobre tudo. Ao lado da amiga araucária, pede licença para deleitar suas sombras. Acende o velho cachimbo e assim, vai colecionando amigos que por ali passam. Na verdade, Jorge acabou transformando-se num contador de boas histórias. Mas afinal, pra que serve o tempo senão formar o homem para repassar suas experiências? No caminho escolhido por ele próprio, Jorge continua sentado em seu banquinho. Vê os carros passarem pela estrada. As pessoas andarem pela calçada. E o tempo? O tempo se esqueceu de Jorge.