Dilmar Daleffe em primeira pessoa
Dilmércio Daleffe
Por anos, procurei belos personagens que figurassem meu
jornalismo. Buscava boas histórias, exemplos de vida, heróis. Mas o que
procurava, sempre esteve ao meu lado. O maior personagem de minhas histórias
era meu pai. Eu já sabia disso. Mas por uma questão ética, não podia me levar
pela paixão, não podia exemplificar o “Magrão” – como eu o chamava - em minhas
porcas linhas de jornal. Mas agora, sem pudores, ou sem medo de infringir a
ética, tenho que relatar quem foi Dilmar Daleffe, quem foi meu pai.
Dilmar nasceu pobre, em 46, de uma família italiana nos
fundões de Urussanga, em Santa Catarina. A família veio a Campo Mourão já nos
anos 50. Responsáveis, começaram uma empresa de ônibus – Real – e mais adiante,
iniciaram a Auto Peças Cometa. Dilmar era o mais novo dos irmãos homens. Certa
vez, emocionado, ele me contou sobre sua infância difícil. Ele pedia que
valorizasse o dinheiro, já que quando criança, passou por grandes dificuldades.
“Eu só escrevia a lápis. Porque quando chegava o final de ano, meu pai fazia
apagar todo o caderno para que o usasse novamente no ano seguinte”, disse.
Aos 14 anos de idade, foi influenciado por amigos e, então,
o cigarro apareceu em sua vida. Os anos passaram e com a sociedade entre os
irmãos, Dilmar ficou a frente da Dipar. Sempre gostou de trabalhar. E se
dedicava por isso. Sua liderança era visível. Casou na década de 60 com Maura e
teve quatro filhos – Delcimara, Denilson, Denise e eu. Com uma relação
conturbada, a separação veio em 83. Foram anos difíceis pra todo mundo. Mas a
vida seguia. E junto a ela, o cigarro e as eternas dores no estômago.
Definitivamente, meu pai não conseguia largar o vício da nicotina tóxica das
carteiras de cigarro. Foram milhares deles durante a vida. Pelas contas, 52
anos fumando sem parar – cerca de 748.800 cigarros.
Na década de 80, “Magrão”, reuniu-se com outras pessoas da
cidade para dar um novo direcionamento a Saúde pública municipal. Ele queria
mais dignidade à sua população, mesmo não sendo médico, prefeito, ou qualquer
outra coisa. Aliás, desculpe, ele era apenas um cidadão. Acolheu Campo Mourão
com tanto carinho, que passou a ser um desbravador de ideias e, mais que isso,
de ações. Ele sentia que deveria fazer sua parte colaborando com a saúde da
cidade. Aliás, poucas pessoas sabem, mas seu sonho sempre foi ser médico. Mas
os recursos da família não colaboraram para que isso acontecesse.
Idealista convicto foi à luta. Junto aos seus amigos,
conseguiu a doação do terreno onde é hoje a Santa Casa. Depois disso, foi de
casa em casa arrecadando tijolos, cimento, pedra, areia. Tudo servia. Era o
primeiro passo para a construção do Hospital Santa Casa. Em 89 fincou em seu
solo a pedra fundamental. Nunca mais parou. A partir daí, meu pai dedicou mais
15 anos de sua vida àquela instituição. O valor que dou a ele é, sobretudo, ao
trabalho VOLUNTÁRIO. Foram mais de 20 anos com dedicação absolutamente
voluntária. Mas o que move alguém a trabalhar apenas por ideais nos dias de
hoje?
No caso de Dilmar, isso era do seu espírito, da sua alma,
dele mesmo. Era um cidadão. Um guerreiro de sua própria comunidade, de sua
própria causa. Certa vez, decidiu sair a vereador. Já havia falado aos quatro
ventos que seria um vereador sem salário e que ainda, lutaria para que os
demais edis abrissem mão do dinheiro. Ele sempre acreditou que vereador não é
profissão e, por esta única razão, não deveriam receber por isso. Mas
acreditem: um dos candidatos impugnou sua candidatura. Nem me lembro mais como
isso aconteceu. Mas por certo, aquilo não era pra ele. Acredito que também
revolucionaria a Câmara.
Essa luta de Dilmar, pela construção da Santa Casa, o tornou
diferente dos demais humanos desta cidade. Não que ele tenha sido um “alienígena”,
um ser com poderes sobrenaturais. Não mesmo. Mas junto a outras poucas pessoas,
como os médicos Oswaldo Mauro e Laércio Daleffe, Lenilda de Assis, João
Teodoro, trabalhou apenas pelo bem da sociedade. O dinheiro, não era nada perto
do que aquele sonho representava. Eles queriam apenas o bem da comunidade.
Diferentemente de hoje. Infelizmente, o dinheiro domina tudo. Quem tomará o
lugar de Dilmar?
Durante os últimos meses, ele abriu-se poucas vezes. Numa
delas, falou sobre a maior tristeza de sua vida: a saída da Santa Casa. Disse
ter saído pela porta dos fundos, principalmente, diante das articulações
políticas movidas por interesses escusos. Mesmo tendo feito tudo que fez, foi
tratado como bandido. Nós sabemos quem foram os responsáveis pelo movimento. O
mais engraçado é que todos eles, absolutamente todos, estão envolvidos em
falcatruas, respondendo a processos da justiça. Pergunto agora: quem são os
bandidos? Porque fizeram Dilmar deixar sua obra? O que ganharam com isso?
MUDANÇA ÀS PRESSAS
É preciso dizer que enquanto Dilmar era o presidente da
Santa Casa, conseguiu unir médicos, enfermeiros, administradores, zeladores.
Todos em torno daquele sonho. Ele mesmo ia até a recepção e ajudava a atender
os doentes. Muitas são as histórias de pessoas ajudadas por ele. Mas um
episódio tem que ser relatado. Não sei o ano, mas ainda quando a instituição
estava no antigo Anchieta, uma chuva abundante inundou o hospital. A água era
tanta que rachaduras começaram a surgir. Um engenheiro da prefeitura foi
chamado e disse que o prédio podia ruir. Então, Dilmar começou a gritaria.
Acionou funcionários e médicos com carro. Eles levaram os pacientes.
Carroceiros foram chamados para levar a mobília. Tudo aconteceu em duas horas,
sob chuva, goteiras, pressão e muita emoção. O hospital foi instalado
provisoriamente no Hospital São José e lá ficou até ser inaugurado em 2002,
onde está até hoje.
Meu pai era um cara especial, movido por belas ações. Não
sabia dizer não. Vendedores passavam pela Dipar e sabiam que ali, o alvo era
fácil. E ele comprava de tudo, mesmo não precisando de nada, somente para
ajudar. Adquiria cabos de vassoura, rapadura, queijos caseiros, salgadinhos,
sabão. Ajudava mendigos, campanhas absurdas, ação entre amigos. Tudo para
ajudar. Até mesmo no jogo do bicho, quando ganhava, repartia com os
funcionários. “Magrão”, também orava e agradecia por sua equipe da Dipar. O
líder, Carlão, era pra ele uma espécie de filho mais velho. Está na empresa há
40 anos e Marlene uma filha mais velha.
ATROPELAMENTO
A primeira boa ação que presenciei de meu pai foi em
dezembro de 1980. Era véspera de Natal e a Dipar estava aberta à noite.
Estávamos dentro da loja – ainda na Capitão Índio Bandeira – quando escutamos
uma freada seguida de um estrondo. Uma criança havia sido atropelada. Dilmar
pulou o balcão e sem pensar pegou o corpo, colocou no banco de trás de seu
Gálax e sumiu até Maringá. Apenas 30 minutos salvaram a criança. Esta história,
apesar de heroica, não era contada por ele. Permaneceu apenas com ele. A
família do menino atropelado sempre o visitou em vésperas de Natal, como forma
de agradecimento. O herói preferiu o anonimato.
Meu pai sempre foi um menino. Apesar de suas
responsabilidades agia como um eterno adolescente. Contava piadas sem graça – e
ele sabia disso -, fazia pegadinhas – do tipo colocar um cigarro explosivo na
carteira dos outros -, ironizava situações com amigos e familiares – chamava o
genro de veado. Ele adorava rir. Depois de um casamento terminado, ele conheceu
Sandra e com ela terminou seus dias. Danilo é o nosso menino caçula, o irmão de
17 anos, que agora vamos nos dedicar.
Mas a história de Dilmar também é marcada por contradições.
Imagine idealizar um hospital, construí-lo para a comunidade, e, ao mesmo
tempo, esquecer-se de sua própria saúde. Foi isso o que aconteceu. Teimoso e
com medo de buscar exames – possivelmente que o obrigassem a largar o cigarro –
meu pai jamais havia feito uma simples endoscopia. Quando fez, agora em
janeiro, já era tarde demais. Tivesse feito cinco anos antes, ele estaria aqui
ainda.
O passado de um homem pode ser esquecido. Principalmente, se
ele não fez nada por sua comunidade. A maioria das pessoas passará em branco.
Eu, certamente, não serei sombra de meu pai. Mas a história do “Magrão” continuará.
Ele fez sua parte. Plantou uma semente. Tudo voluntariamente. Valores assim
poderiam continuar. Mas ninguém tem a coragem de levantar a bandeira. O
dinheiro é mais forte. Por isso a corrupção, por isso as falcatruas, a falta de
caráter, desvios de conduta.
Também não posso ver meu pai sem a figura maldita do
cigarro. Ele praticamente nasceu segurando a sua cruz. Foram as substâncias
tóxicas do “Carlton” que tiraram sua vida precocemente. O cigarro causou sua
dor, proporcionou um câncer, uma cama de hospital, tirou sua vida. Ele sabia
disso, mas jamais conseguiu se livrar da maldição. Disse uma vez pra mim: “Quem
fuma, foi amaldiçoado”. Quantos mais
serão amaldiçoados? Quantas camas de hospital teremos que enfrentar?
Pai, saiba que onde tiver, perpetuaremos sua história.
Graças a Deus podemos sentir orgulho de você. Quantos filhos podem ter orgulho
de seus pais? Nós temos motivos de sobra. Me ensinou muito. Peço desculpas
pelos erros que cometi. Me redimo de muitos episódios e vejo que não sou nada
perto de você. Talvez algum dia, vire até nome de rua. Pode ser, não pode? Não
sei se gostaria. Mas ainda é pouco perto do que fez. Mas daqui onde estou, vou
mandar aquele recado que sempre me disse: Campo Mourão não merece ter gente sem
caráter e sem atitude pra liderá-la – em todas as áreas. Pra fazer a cidade melhorar
e crescer, exige-se ser, primeiro, um cidadão. Tem que ter atitude, olhar e
corrigir os problemas e cuidar mais dos outros do que a si próprio.
Pai, em breve nos reencontraremos e daremos risada de tudo
que passou aqui em baixo!!! Sei que queria agradecer muita gente que te ajudou.
Faremos isso por ti. Dilmar viveu intensamente 67 anos. No dia 27 de janeiro
deste ano, descobriu o tumor. Uma doença cruel e maldita que não permitiu que a
enfrentássemos. Nos últimos 8 meses, acompanhei seus dramas, camas e tubos de
hospitais. Foram horas, dias de sofrimento. Uma angústia desumana que acabou as
4 horas da manhã do dia 09 de agosto com um recado no celular. Um telefonema
previsto. A hora havia chegado. Aquele sábado amanheceu nublado. O céu cinza
anunciava algo diferente. Mas se assim tinha que ser, foi. Mas agora você
descansou e está em paz. Aqui, nada mudará.